Senadores pedem suspensão de portaria da Funai que protege isolados no Amazonas


Por: Ana Cláudia Leocádio

19 de dezembro de 2024
Senadores pedem suspensão de portaria da Funai que protege isolados no Amazonas
Hiran Gonçalves (Progressistas) é senador de Roraima e Omar Aziz (PSD) é parlamentar pelo Amazonas (Composição: Élio Lima/CENARIUM)

BRASÍLIA (DF) – Os senadores Omar Aziz (PSD-AM) e Hiran Gonçalves (Progressistas-RR) apresentaram Projeto de Decreto Legislativo (PDL), no Senado, para sustar os efeitos da Portaria 1.256, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do dia 10 de dezembro deste ano, com restrições de uso da área na Terra Indígena Mamoriá Grande, onde há indícios da presença de indígenas isolados. O território está localizado entre os municípios de Tapauá e Lábrea, no Sul do Amazonas.

Indígena isolado avistado em Itapiranga, no interior do Amazonas (Reprodução)

Segundo o glossário do Senado, o Projeto de Decreto Legislativo é uma proposição que tem como objetivo regular as matérias de competência exclusiva do Poder Legislativo, sem a necessidade de sanção do presidente da República. Dentre outras permissões, por meio desse instrumento, o Congresso Nacional pode sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.

A portaria da Funai restringe o direito de ingresso, locomoção e permanência de “pessoas estranhas aos quadros da Funai” na área descrita, até a publicação da homologação da demarcação. Conforme o Ministério Público Federal (MPF), que recomendou esta providência da autarquia, a edição de uma portaria de restrição de uso da área está prevista no Art. 7° do Decreto N° 1.775/96.

O PDL dos senadores do Amazonas e Roraima foi autuado com o número 719/2024 e teve também dois pedidos de urgência apresentados, para que pudesse ser apreciado ainda na noite de terça-feira, 17, em plenário, o que não aconteceu.

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Alegações

Omar Aziz justificou seu pedido de urgência para votação alegando que a Funai está “atropelando todo mundo”. “E eles, com um decreto, acham lá uma porcelana – e a gente não sabe nem se essa porcelana é indígena ou não – e já fazem restrições”, declarou.

Na justificativa do PDL 719/2024, os senadores afirmam que a Lei 14.701/2023, conhecida como a “Lei do Marco Temporal”, “estabelece critérios para a demarcação de terras indígenas, baseando-se na comprovação da posse tradicional indígena na data da promulgação da Constituição Federal de 1988”.

Este marco temporal redefine os parâmetros legais para reconhecimento e proteção de terras indígenas, impactando diretamente as normas e portarias que tratam de demarcações e restrições em áreas indígenas”, sustentam.

Indígenas em área de exploração da Eneva (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Por isso, eles alegam que a portaria da Funai contraria tudo o que está previsto nesta lei. “A manutenção dos efeitos da referida portaria sem a devida adequação ao novo marco legal gera insegurança jurídica e conflitos de competência entre os órgãos envolvidos na questão indígena”, ressaltam.

Outro ponto levantado pelos parlamentares seria o fato de que as interdições podem “trazer significativos impactos socioeconômicos tanto para as comunidades indígenas quanto para as atividades econômicas da região”.

As comunidades tradicionais que vivem nessas áreas dependem diretamente dos recursos naturais para sua subsistência e cultura. A restrição de acesso pode, também, impactar negativamente a economia local, resultando em perda de empregos e diminuição da renda para famílias que dependem dessas atividades”, completa a justificativa.

Ao decidirem recorrer ao uso do Projeto de Decreto Legislativo, os senadores afirmam que buscam “assegurar que a legislação vigente seja respeitada e aplicada de forma uniforme, garantindo os direitos constitucionais e legais dos povos indígenas, bem como a segurança jurídica necessária para a administração pública e a sociedade”.

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Pediu apoio

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que nesta semana está à frente de suas última sessões no Casa Legislativa, ouviu os pedidos dos dois senadores e disse que recolheu a questão para exame da Presidência, com uma resposta ainda na mesma sessão.

Ao pedir o apoio dos colegas à proposta, em Plenário, Omar Aziz disse que gostaria de aprová-la com “maior urgência para mostrar claramente que não adianta o Executivo fazer um decreto (na verdade uma portaria), porque o Legislativo pode derrubar esse decreto através de um decreto legislativo”. Ele afirmou ainda que tinha o compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de votar com urgência o PDL na outra Casa.

O senador Hiran Gonçalves reforçou o pedido de urgência, também em plenário, e disse considerar a portaria da Funai extremamente nociva para o Estado de Roraima, porque 67% a 70% da energia elétrica vêm do gás liquefeito proveniente do Campo de Azulão, localizado no Amazonas”. “E a Funai, com essa portaria, inviabiliza esse projeto. Inclusive, inviabiliza investimentos que vão gerar muito mais energia para o Amazonas e para o Brasil”, afirmou.

Ocorre que o Campo de Azulão, explorado pela empresa Eneva, não está localizado na região de Lábrea e Tapauá, e, sim, no município de Silves, que fica no Baixo Rio Amazonas, distante 853.37 km em linha reta de Lábrea.

Vista aérea do Complexo de Azulão (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Lei é contestada no STF

A Lei 14.701/2023, a “Lei do Marco Temporal” está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). São três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86.

Aprovada no dia 27 de setembro de 2023, pelo Senado, a lei foi uma reação do Congresso Nacional seis dias depois que o STF derrubou a chamada tese do Marco Temporal. Por 9 votos a 2, o plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou parte do marco, mas o Congresso derrubou o veto e promulgou a lei, que segue em vigor.

O relator das ações no STF, ministro Gilmar Mendes, decidiu criar uma Comissão Especial de Autocomposição, numa tentativa de chegar a uma conciliação entre as partes e evitar o que ele chama de efeito “backlash” (um contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial).

Instalada no dia 5 de agosto deste ano, a comissão sofreu um revés com a saída da mesa de debates da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior entidade representativa dos povos originários do País, e autora de uma das ADIs. Os trabalhos estavam previstos para se encerrarem nessa quarta-feira, 18, mas foram prorrogados até fevereiro do próximo ano.

A ideia do ministro Gilmar Mendes, segundo os juízes auxiliares que conduzem as discussões na comissão, é chegar a um consenso em relação ao que já decidiu o STF sobre o Marco Temporal e avançar na legislação para assegurar as demarcações, garantindo os direitos tanto de indígenas quanto de não indígenas.

Onde fica Mamoriá Grande

Denominada como Terra Indígena Mamoriá Grande, a área abrange uma superfície de 259 mil hectares. A interdição abrange 343 quilômetros de uma área florestal nos municípios de Tapauá e Lábrea, no Sul do Amazonas, onde há indícios da presença de indígenas isolados.

A Funai determinou a interdição de 343 quilômetros de uma área florestal nos municípios de Tapauá e Lábrea (Composição: Weslley Santos/CENARIUM)

A portaria foi editada para proteger grupo de indígenas isolados do Mamoriá Grande, cuja presença foi confirmada em agosto de 2021, pela coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus, nas proximidades do Rio Purus, no interior da Reserva Extrativista do Médio Purus, em Lábrea.

De acordo com reportagem do portal “O Joio e o Trigo”, somente um ano depois a Funai, em conjunto com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), publicou uma portaria com “medidas cautelares para a proteção de indígenas isolados” da região da Lábrea, em dezembro de 2022. A portaria do último dia 10 de dezembro é um instrumento mais robusto de proteção aos isolados.

Cimi considera o ‘decreto da morte”

O representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da Região Norte e membro da Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres da entidade, Guenter Francisco Loebens, considera um absurdo a proposta dos senadores.

É o decreto da morte de um povo indígena. É exatamente isso e assim que deve ser chamado, porque visa impedir a proteção de um povo indígena em situação de extrema vulnerabilidade. A intencionalidade não é outra, senão a de deixar esse povo indígena isolado exposto para que seja exterminado, a exemplo do que aconteceu em muitos outros casos na história recente do País e, assim, deixar o seu território disponível para o mercado”, afirmou Loebens.

Na avaliação do dirigente, esta é uma iniciativa que ultrapassa todos os limites da decência porque se utiliza da tese do Marco Temporal, que já foi declarada inconstitucional pelo STF.

O fato do Estado desconhecer a existência desse povo indígena isolado em 1988 não quer dizer que ele não estivesse ocupando aquele território nessa data. Jamais poderia imaginar que, nos dias atuais, parlamentares eleitos pelo voto popular pudessem descer tão baixo a ponto de tentar impedir uma medida essencial para a proteção de um povo indígena, que, sem ela, pode ser exterminado”, concluiu o representante do Cimi.

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