TJAM apaga identidade indígena em nome da neutralidade?


Por: Inory Kanamari

18 de novembro de 2025

A invisibilidade é uma violência silenciosa. Ela se disfarça de formalidade, de procedimento, de padrão institucional, e só é percebida por quem, mesmo existindo, é sistematicamente apagado. Como mulher indígena e advogada, falo a partir do lugar de quem vive essa dor diariamente: a dor de existir e, ainda assim, ser tratada como se não existisse. Meu povo existe. Eu existo, como ser humano e como profissional. E é sobre isso que venho falar: contra fatos, não há argumentos.

Vivemos às margens de uma sociedade hipócrita, cruel e narcisista. E posso afirmar, com a firmeza de quem vive essa exclusão: profissionais indígenas não “existem” porque o sistema não nos permite existir. Há um projeto em curso, e ele é racista, preconceituoso, xenofóbico e colonial. Ao sistema de justiça, que deveria zelar pela igualdade e pela dignidade, interessa manter em seus quadros corpos dóceis, acríticos e obedientes. Corpos “aceitáveis”. Corpos desprovidos de identidade.

O exemplo mais recente desse apagamento institucional está no site da Ouvidoria do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM). Ali, uma “Pesquisa Socioeconômica”, embora aparentemente inofensiva, revela o abismo que separa a realidade dos povos indígenas da burocracia judicial. Ao responder o questionário, deparo-me com uma pergunta obrigatória sobre a minha raça/cor. As únicas opções disponíveis? Branco, pardo ou preto. A categoria “indígena” simplesmente não existe.

A ausência dessa opção não é uma falha técnica. É um reflexo direto de um sistema de justiça que se recusa a enxergar a diversidade cultural e étnica do território em que opera. Trata-se de um analfabetismo estrutural, social, histórico e cultural, que compromete a legitimidade do próprio sistema. Ao negar o reconhecimento da identidade indígena, o Estado contribui ativamente para a perpetuação de um genocídio simbólico e institucional.

Essa negligência revela algo ainda mais profundo: um Estado que se recusa a reconhecer a intelectualidade, a competência e o direito dos povos indígenas de ocuparem espaços como profissionais, operadores do direito e defensores de seus próprios saberes. Quando a estrutura pública não prevê a existência de indígenas em seus formulários, está declarando, ainda que de forma disfarçada, que não espera, e talvez nem deseje, que estejamos ali.

Este artigo não é apenas uma denúncia. É, acima de tudo, um grito. Um grito de alerta e de socorro. Nós, profissionais indígenas, existimos. Temos formação, temos competência, temos voz. E exigimos respeito. A omissão, ainda que travestida de descuido técnico, segue matando, não apenas nossos corpos, mas também nossas histórias, nossas identidades e nossos futuros.

Enquanto o sistema de justiça continuar ignorando a existência dos povos indígenas dentro dele próprio, continuará falhando em sua missão mais básica: garantir justiça. Que este texto sirva como espelho e como clamor: respeitem nossa existência. Não queremos favores, queremos apenas existir com dignidade.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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