Trabalhadores relatam angústia na pandemia: ‘com emocional abalado, voltei a beber para espantar a solidão’

O auxílio federal, desde a implantação amparou diretamente cerca de 68 milhões de pessoas. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Luciana Bezerra – Da Revista Cenarium

MANAUS – “Meu emocional, sem dúvida, ficou bastante abalado, tanto, que engordei, voltei a beber, quase todo o dia para espantar a solidão, a incerteza e a tristeza. Muito difícil, viu!. Olha que já passei aperto na vida, de tão ter nada mesmo. Mas essa pandemia mexeu com o meu psicológico de uma forma que ainda estou me recuperando”. O dramático depoimento é do vendedor ambulante, Arilson Cavalcante, 46 anos, que trabalha no Centro de Manaus, há 28 anos.

Essa é uma das histórias que você vai conhecer ao longo desta reportagem. A REVISTA CENARIUM passou cinco dias percorrendo diversas áreas cidade em buscas de informações para saber como a pandemia de Covid-19 afetou o mercado de trabalho, já precário, no Brasil. Os trabalhadores informais, foram os mais afetados pela crise causada pela doença. 

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A pandemia do novo Coronavírus pôs em xeque todo o modo de vida que se conhecia, modificando a rotina e desafiando o sistema econômico e político mundial. No Brasil, o isolamento social, em decorrência da pandemia fortaleceu, um outro problema, já conhecido por aqui, a fome. Todos esses fatores, aliados à falta de apoio do governo Jair Bolsonaro aos mais vulneráveis, está acelerando o crescimento da pobreza no Brasil e já coloca o país como “epicentro emergente” da fome extrema, de acordo com relatório divulgado, no início de julho, pela Organização Não Governamental Oxfam. 

Saiba quem são os personagens

O casal de venezuelanos, José Moreno e Carmen Perez, com os filhos, é um dos personagens desta reportagem (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O casal de venezuelanos da etnia Warao, localizada no noroeste da Venezuela, Carmen Perez, 40 anos e José Moreno, 39 anos, chegaram ao Brasil em 2018, com o pequeno Alfredo Jose Perez, 7 anos. Foram oito dias debaixo de sol forte, chuva, fome e sede até chegar a Pacaraima (a 213 quilômetros de Roraima).

Na mala, além de duas mochilas, estava a esperança de encontrar uma terra digna, onde pudessem fixar residência e viver. Assim como muitos conterrâneos, eles deixaram a terra natal em fugindo da fome que atravessa o país, em decorrência da crise política e econômica. 

Carmen e as duas crianças [uma delas era a Rosane Perez, 6 meses] estavam sentadas na calçada em torno da praça da Matriz, no centro histórico da cidade. O olhar esperançoso e um tímido sorriso emitidos por ela,

Com um sotaque espanhol carregado, Carmen afirma que a viagem até o Brasil foi muito cansativa e tinha dias que ela e o pequeno Alfredo choravam de cansaço e fome. Quando ia perguntá-la sobre o bebê, fomos interrompidas por seu marido, José Moreno, que chegou mostrando as passagens para a viagem de barco da família.

“Consegui comprar as passagens, graças a Deus. Só tinha vaga para o dia cinco de agosto”, questionei sobre o destino da viagem. “Vamos para Belém e de lá para o Maranhão, a família toda. Cansamos daqui. Foram dois anos, tentando conseguir um emprego para o sustento da minha família. Tenho oito filhos, que ficaram na Venezuela e gostaria de mandar dinheiro para eles”, justifica José.

O venezuelano destaca ainda que a pequena Rosane Perez, 6 meses, nasceu no Brasil e que o povo brasileiro é muito acolhedor e bondoso. No chão da praça, junto a família, havia uma lata de leite ninho, uma mamadeira com o leite da criança, outros pertences da família e um bibelô da Virgem Maria, mãe de Jesus, para atrair proteção e sorte, afirma o pedinte.

Caminho

De Pacaraima até Manaus, a família foi pegando carona ao longo do caminho até chegar na cidade. Sem moradia fixa, eles dividem o espaço com outras famílias em situação de vulnerabilidade, nos abrigos de Manaus. O primeiro, foi próximo a Rodovia de Flores, porém, desde o início da pandemia de Covid-19, a família está alojada no Abrigo Cáritas Arquidiocesanas, no Centro de Manaus, onde podem pernoitar, fazer higiene pessoal e duas refeições como, o café e o jantar. Ao longo do dia a família percorre as ruas do centro e os sinais de trânsito, da cidade, pedindo dinheiro.   

Solidão

Não muito distante dali, encontramos o ambulante Arilson Abreu Cavalcante, 46 anos, que há 28 anos comanda uma barraca de óculos e bonés, no centro da cidade. Seguindo os protocolos de segurança, por conta da pandemia, obrigou o comércio não essencial a fechar as portas. Foram quase quatro meses sem trabalhar, afirma Arilson, que antes da pandemia faturava cerca de R$ 10 mil por mês, tinha cinco funcionários e viu sua renda despencar para R$ 600,00, no primeiro mês após o fechamento do comércio.

“A pandemia afetou demais minha vida. Estou há 4 meses sem ver minha família, que está no Rio de Janeiro, por causa da pandemia. Fiquei sozinho aqui e senti muito as mudanças do isolamento, principalmente na área financeira, psicológica, familiar e emocional” — assegura o ambulante com os olhos marejados –, “Nesse período precisei me reinventar para não deixar na mão as pessoas que dependem de mim, como minha família e meus funcionários. Criei uma conta da barraca nas redes sociais e passei a vender os produtos online. O faturamento não foi o mesmo do ponto físico, mas deu para segurar as pontas e ajudar meus funcionários com cestas básicas, já que todos têm famílias” enfatiza, Arilson.

Indagado sobre o que mais o afetou durante a pandemia, o ambulante foi enfático: “Essa pandemia mexeu com o meu psicológico de uma forma que ainda estou me recuperando. Mas, graças a Deus que voltei a trabalhar. Isso, é vida. O trabalho dignifica o ser humano. Medo da Covid-19, nós temos. quem não tem? mas, ficar em casa esperando o tempo passar, sem saber o que vai acontecer e as contas chegando no fim do mês, é muito pior”, finaliza o ambulante.

Sem auxilio

Já diarista Terezinha Assis da Silva, 48 anos, sem marido e com três crianças pequenas para sustentar se viu diante de um dilema com a chegada da pandemia. Segundo ela, apenas três de seus patrões conseguiram manter o pagamento das diárias nos dois primeiros meses de isolamento social, sem que ela trabalhasse. Depois, precisou se reinventar para não passar fome com os filhos, pois em decorrência de um problema no documento, não conseguiu receber o auxìlio emergencial, estipulado pelo governo federal. A diarista se enquadra no grupo de pessoas que recebe duas cotas do auxílio de R$ 600,00, o equivalente a R$ 1.200,00, por ser mãe solteira.

“Comecei a fazer bolo e vender, no bairro onde moro, não era muito mas, dava para comer com meus filhos. Minha vizinha me ajudou a dar entrada no auxílio emergencial. Mas, tive um problema no documento e não consegui receber e tive a conta bloqueada. Semana passada que consegui ir no banco e resolver tudo. Agora estou aguardando o dinheiro entrar na conta. Voltei a trabalhar há duas semanas somente para as três famílias que me ajudaram no início, as demais, me dispensaram. Difícil, viu”, assinala a diarista. 

Na feira

A feirante Rosa Pinheiro, 65 anos, trabalha no mercado Dorval Porto, no bairro Nossa Sra Das Graças, Zona Sul de Manaus, há 60 anos. “Quando na vida pensávamos que o mundo ia parar? Voltei a trabalhar há duas semanas. Como eu e meu marido somos do grupo de risco, passamos quatro meses, sem trabalhar. A pandemia só não nos afetou profundamente porque tínhamos uma reserva no banco e o salário da aposentadoria do meu marido”, afirma a feirante.

A feirante Rosa Pinheiro, 65 anos, é uma das protagonistas que sofreu com a pandemia. A história dela, você vai conhecer ao longo desta reportagem (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O guardador e lavador de carros, Raimundo Nonato da Cruz de Lima, 38 anos, deixou o Maranhão aos 18 anos. Na época, ele havia ouvido em um noticiário de TV que Manaus era a terra de oportunidades. Não pensou duas vezes, vendeu o pouco que tinha, pôs em uma mochila três mudas de roupa e deixou para trás, família, amigos, antepassados e o amor da sua sua, na ocasião.

De São Luís a Belém foram mais de 13 horas de ônibus, de acordo com ele. Depois, mais uma semana viajando de barco de Belém até Manaus. São, aproximadamente, 1.600 quilômetros que separam os dois estados, e só é possível fazer o percurso de avião ou de barco percorrendo o Rio Amazonas – de carro é inviável por conta de complicações estruturais das estradas. Esse trajeto é considerado um dos mais longos de barcos no país, portanto, foi uma aventura, contato com a natura e aprendizado cultural para o jovem maranhense acostumado a ver o mar, que largou a terra natal em busca de oportunidades na capital amazonense.

Reabilitação

Quando chegou em Manaus, Raimundo não conhecia ninguém, através de amizades que havia feito no barco ao longo da viagem, foi trabalhar de ajudante de pedreiro e na profissão permaneceu por um ano. Sem documentos e estudo, ele se envolveu com companhias indevidas, o que acabou se tornando uma porta de entrada para o mundo das drogas.

“Deixei o Maranhão em busca de um sonho, por ser muito novo, acabei me envolvendo nas drogas e hoje vivo nas ruas ou em abrigos”, se arrepende Raimundo.  

Raimundo passou três anos na Fazenda Esperança fazendo tratamento e reabilitação do uso de drogas. Atualmente, ele vive com a mulher, que conheceu na rua. Durante o isolamento social, por causa da pandemia, o casal conseguiu vaga para dormir no Abrigo Áurea Pinheiro Braga, na Compensa, Zona Oeste de Manaus. O mais difícil de morar na rua, segundo Raimundo, não é o descaso da sociedade e sim, o perigo de sofrer algum tipo de violência, à noite, enquanto estiver dormindo.  

Raimundo Nonato, 38 anos, o maranhense que virou morador de rua, nas ruas de Manaus, é outro protagonista desta história (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“O pior horário de morar na rua é a noite, onde ficamos mais vulneráveis. Posso está dormindo e ser agredido ou morto por alguém. No Abrigo estamos seguros, temos refeição e um espaço para tomar banho e fazer higiene pessoal”, destaca o guardador de carros que perdeu o contato com a família no Maranhão e luta para sobreviver como pode nas ruas de Manaus.  

Como a pandemia afetou os menos favorecidos

Segundo dados do relatório, o Brasil aparece na mesma classificação, juntamente com a Índia e África do Sul. A análise compara o Coronavírus como o vírus da fome: como a Covid-19 está aumentando a fome num mundo faminto. Nele, a ONG analisa os impactos da doença em países onde a situação alimentar e nutricional já era extrema antes da pandemia.

Em 2014, ainda conforme informações do relatório, o Brasil estava “vencendo” a guerra contra esse fantasma, graças a investimentos governamentais em benefício de pequenos produtores rurais e a um pacote de políticas que incluíram a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), desenvolvido em parceria com a sociedade civil.

No entanto, a situação da pobreza e fome no país, começou a deteriorar-se em 2015 devido “à crise econômica e a quatro anos de austeridade”. Até 2018, o número de pessoas em situação de fome no Brasil aumentou em 100 mil (para 5,2 milhões) devido a um aumento acentuado nas taxas de pobreza e desemprego e a cortes radicais nos orçamentos para agricultura e proteção social, afirma o documento.

Além disso, fatores como, cortes no programa Bolsa Família e, desde 2019, um “desmantelamento gradual” de políticas e instituições destinadas a combater a pobreza, como o Consea ajudou a deterioração da situação da fome no Brasil.

Trabalho informal do Amazonas

A quantidade de trabalhadores informais no Estado do Amazonas é a maior do país. Enquanto a taxa do País é de 40,9%, na cidade de Manaus, 58,35% dos ocupados trabalham em regime informal. Os dados referem-se ao último trimestre de 2019, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em fevereiro deste ano.

Segundo dados apresentados pelo IBGE, o Estado possui 1.657 milhão de pessoas na força de trabalho, destes, 967 mil estão na informalidade. No Brasil, são 94.552 milhões na força de trabalho e 38.735 milhões sem carteira assinada ou CNPJ. Os números referem-se aos trabalhadores que estão ocupados nos grupos de setor privado, por conta própria, empregadores, trabalhadores domésticos e trabalhador familiar auxiliar.

Segundo um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os trabalhadores por conta própria receberam efetivamente apenas 60% do que habitualmente recebiam, com rendimento médio de apenas R$ 1,09 mil. Já os trabalhadores do setor privado sem carteira assinada receberam 24% a menos.

A súbita falta de renda diante da pandemia é um trágico desfecho para muitas trabalhadoras (as mulheres são maioria absoluta entre os trabalhadores domésticos) que já amargaram perda de direitos nos últimos anos.

Por informalidade, segundo IBGE, se entende o empregado no setor privado (sem carteira assinada) ou trabalhador por Conta-Própria (sem CNPJ e Sem Contribuição para Previdência Oficial) ou empregadores (sem CNPJ e Sem Contribuição para Previdência Oficial) ou trabalhador doméstico (sem carteira de trabalho assinada) ou trabalhador familiar auxiliar.

O ponto de vista de especialistas sobre a pandemia

Para o professor de sociologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e sociólogo, Luiz Antônio Nascimento, os trabalhadores que não puderam parar durante a pandemia são uma expressão máxima da força de trabalho em geral e deveriam ser tratados de outra forma. Segundo o sociólogo, a economia e a sociedade precisam dessa força de trabalho.

“Apesar de todos os problemas, o Brasil tem conseguido sobreviver diante desta pandemia. No entanto, a sociedade precisa enxergar com outros olhos, os trabalhadores, que de alguma forma, precisaram se expor ao risco do vírus para fazer a economia de alguma forma funcionar, enquanto a maioria das pessoas estava isolada em casa. Isso inclui os profissionais de saúde, dos supermercados, dos transportes, feirantes, produtores rurais e até mesmo os trabalhadores informais, neste caso, a única renda vem do trabalho diário”, critica o professor. 

Em seu canal no YouTube, a filósofa, poeta e psicanalista capixaba Viviane Mosé, explica em uma série de vídeos a crise gerada pela pandemia do novo Coronavírus. Segundo ela, a doença provocou uma quebra no modelo de civilização que a humanidade desenvolveu ao longo da história.

“De repente, aparece algo na China, que tomamos conhecimento, mas ao mesmo tempo, parecia tão distante de nós. (..) Até que chega no Brasil, no início começamos com o isolamento social, que à princípio era preventivo e parecia está funcionando muito bem. Conseguidos controlar de um certo modo. Defender a saúde é sair do jogo e sair do jogo é suspender a lógica do mercado e isso tudo coloca em questão a grande máquina da civilização, os horários, os boletos para pagar. De repente o vírus chega e para se proteger é preciso suspender as ordens. O que é ficar em casa. como assim? se eu estava sempre buscando está fora do meu tempo. A ansiedade, a pressa e a rapidez são marcas do nosso tempo, ou seja, característica dessa civilização. A pandemia suspendeu a máquina da civilização”, destaca a especialista.

Previdência Social

De acordo com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), todo trabalhador com carteira assinada é automaticamente filiado à Previdência. Já as pessoas que atuam por conta própria ou na informalidade precisam se inscrever e contribuir mensalmente para ter acesso aos benefícios previdenciários.

Trabalhadores informais que contribuem com o INSS podem solicitar auxílio-doença caso tenham o diagnóstico, mas terão de lidar com a fila de benefícios represados do instituto. Além disso, as agências vão restringir o atendimento sem agendamento até às 13h, em decorrência da pandemia.

Balanço da Covid-19 no Brasil

O Brasil 117.996 mortes por coronavírus confirmadas até as 13h desta quinta-feira, 27, segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde.

Na quarta-feira, às 20h, o balanço indicou: 117.756 mortes, 1.090 mortes confirmadas em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 938 óbitos, uma variação de -5% em relação aos dados registrados em 14 dias.

Carlos Daniel Herrera, 25 anos, mora no Brasil há quase dois anos. Ele é vendedor na barraca do ambulante Arilson Abreu, outro personagem que você vai conhecer ao longo desta reportagem (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Sobre os infectados, eram 3.722.004 brasileiros com o novo Coronavírus, 47.828 confirmados no último período. A média móvel de casos foi de 37.370 por dia, uma variação de -16% em relação aos casos registrados em 14 dias.

Em todo o Estado do Amazonas, até esta quarta-feira, a doença já matou de 3,6 mil pessoas. O número de infectados chegou a 117.412 mil e, desse total, mais de 99.638 mil pessoas se recuperaram da doença, ainda conforme o boletim epidemiológico da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM).

Até a publicação deste conteúdo, a Secretaria de Trabalho e Emprego e o Fundo Previdenciário do Estado do Amazonas (Amazonprev), não responderam aos questionamentos da Revista Cenarium.

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