Transição energética global repete injustiças da era dos fósseis, aponta relatório


Por: Fred Santana

15 de outubro de 2025
Transição energética global repete injustiças da era dos fósseis, aponta relatório
Documento afirma que a transição para energias renováveis está sendo conduzida de forma "desigual e injusta” (Tauan Alencar/MME)

MANAUS (AM) – A expansão das energias renováveis, celebrada como solução para a crise climática, vem reproduzindo desigualdades históricas e práticas coloniais. Essa é a principal conclusão do novo relatório Renewable Energy Tracker — Mudando de rumo: colocando a justiça no centro da transição para energias renováveis” da Climate Action Network International (CAN International), lançado nesta quarta-feira, 15, que examinou políticas e projetos energéticos em 16 países, entre eles Alemanha, Canadá, Austrália, China, Emirados Árabes Unidos, Índia, Paquistão e Chile.

O documento afirma que a transição para energias renováveis está sendo conduzida de forma “desigual e injusta”, e que o modelo dominante “prioriza o lucro e a exportação em detrimento das necessidades e direitos das comunidades locais”. Segundo a CAN, o atual ciclo de investimentos em energia limpa tem reproduzido “relações coloniais de exploração entre Norte e Sul globais”, aprofundando dependências econômicas e energéticas.

Embora as fontes renováveis possam oferecer resiliência, segurança energética e prosperidade local, o relatório mostra que, na prática, esses benefícios raramente se materializam. O diagnóstico é contundente: “Sem justiça no centro da transição, oportunidades de propriedade local, governança democrática e empregos decentes serão perdidas – e o padrão de desenvolvimento desigual será perpetuado”, diz o documento.

Embora fontes renováveis possam oferecer resiliência, segurança energética e prosperidade, benefícios raramente se materializam (Ricardo Botelho/MME)
Extrativismo verde: o novo ciclo de exploração

O estudo alerta para o avanço do “extrativismo verde” – a exploração de minerais estratégicos como lítio, cobre, níquel e cobalto sob o pretexto da descarbonização. Canadá e Austrália aparecem entre os maiores protagonistas desse fenômeno. Em 2023, 761 empresas mineradoras canadenses atuavam no exterior, sendo 101 na África e 249 na América Latina e Caribe. A Austrália, por sua vez, mantinha 170 companhias ativas em 35 países africanos, com investimentos de cerca de US$ 60 bilhões.

Segundo o relatório, essas operações frequentemente “viola[m] direitos humanos e ambientais básicos, especialmente em países onde a fiscalização é fraca e o consentimento das comunidades não é respeitado”. Dentro do relatório, o indicador Transition Minerals Tracker do Business and Human Rights Resource Centre registrou 47 denúncias de violações cometidas por mineradoras canadenses e 18 por australianas entre 2021 e 2024 – metade delas localizadas na América Latina.

A CAN cita ainda que “os países do Norte global continuam a travar uma corrida por minerais da transição, enquanto bloqueiam o desenvolvimento industrial das nações produtoras”. Alemanha e Japão, por exemplo, ampliaram acordos com governos do Leste Europeu e do Sudeste Asiático para o fornecimento de níquel e terras raras, mesmo diante de alertas sobre desmatamento e contaminação de solos. No caso alemão, o relatório destaca o apoio da União Europeia ao controverso projeto de mineração de lítio em Jadar, na Sérvia, descrito como “um exemplo de como o discurso de sustentabilidade tem sido usado para justificar novas formas de colonialismo econômico”.

Megaprojetos e contratos injustos sacrificam comunidades

O relatório também aponta que a corrida por energia renovável está sendo dominada por megaprojetos controlados por multinacionais, enquanto modelos comunitários seguem marginais. Entre 2015 e 2024, o número de projetos acima de 1 gigawatt aumentou de 17 para 73, e há mais de mil em planejamento até o fim da década. Essas iniciativas, de acordo com a CAN, “carregam altos riscos socioambientais e geram poucos benefícios locais”.

Corrida por energia renovável está sendo dominada por megaprojetos controlados por multinacionais (Saulo Cruz/MME)

Nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, a estatal Masdar administra 51 gigawatts em empreendimentos internacionais – oito vezes a capacidade renovável instalada dentro do país. “O caso dos Emirados mostra um paradoxo: o país é o maior investidor em energia renovável no exterior, mas mantém um dos maiores consumos de combustíveis fósseis per capita do mundo”, afirma o relatório.

A Namíbia é outro exemplo. O megaprojeto Hyphen, desenvolvido em parceria com a empresa alemã Enertrag, foi classificado como “símbolo da nova dependência verde”, por gerar endividamento público e concentrar benefícios nas mãos de investidores estrangeiros. “Deveria ser um projeto de soberania energética; tornou-se um mecanismo de transferência de riscos e lucros para o Norte”, cita o texto.

Casos semelhantes foram registrados no Egito, que destina 4% de seu território a parques solares e eólicos voltados à exportação de hidrogênio verde. O país planeja produzir 3,2 milhões de toneladas anuais de hidrogênio até 2030, mas 2,8 milhões serão enviadas ao exterior. A CAN adverte que “a promessa de energia limpa para todos está sendo substituída por um novo extrativismo energético baseado em sol, vento e dívida externa”.

Além dos impactos territoriais, contratos desequilibrados têm elevado custos de energia em países como Quênia e Paquistão, onde acordos com produtores independentes levaram ao endividamento de empresas públicas e a tarifas mais altas para os consumidores. Em vários desses projetos, diz a CAN, “o direito ao Consentimento Livre, Prévio e Informado é ignorado, e comunidades são deslocadas sem compensação adequada”.

Falhas regulatórias e exclusão na transição energética

A rede internacional também denuncia a falta de regulação e de controle público sobre o setor. A ausência de mecanismos obrigatórios de diligência em direitos humanos e de avaliações ambientais robustas tem permitido abusos sistemáticos. “Mesmo em países com leis avançadas, a aplicação é fraca, e as corporações operam com pouca ou nenhuma responsabilização”, afirma o relatório.

A CAN destaca que “a privatização e a financeirização da energia renovável estão minando a promessa de justiça energética”. O texto cita o papel das Instituições Financeiras Internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que empurram países em desenvolvimento para modelos privados de geração e distribuição, limitando sua capacidade de investir em infraestrutura pública.

O resultado é uma transição desigual: famílias de baixa renda, comunidades rurais e povos indígenas seguem sem acesso a energia de qualidade. “O acesso desigual à energia renovável ameaça transformar a transição em privilégio dos mais ricos”, alerta a CAN.

Experiências positivas

Ainda assim, o relatório aponta experiências inspiradoras. Na Alemanha, cooperativas energéticas respondem por parte significativa da geração solar distribuída; na Índia, programas de energia descentralizada beneficiam milhares de vilarejos; e no Canadá e na Austrália, projetos liderados por povos indígenas demonstram que “quando comunidades têm agência, a transição se torna mais justa, sustentável e inclusiva”.

Com a proximidade da COP30, que ocorrerá em novembro, em Belém (PA), a CAN propõe a criação do Mecanismo de Ação de Belém para uma Transição Justa (BAM) – uma iniciativa multilateral que garanta “financiamento público em larga escala, reforma das instituições financeiras internacionais e obrigação legal de propriedade comunitária”.

“O futuro da transição energética dependerá de quem a conduz e de quem se beneficia dela”, resume a CAN International. “Enquanto permanecer sob controle das mesmas forças que lucraram com os combustíveis fósseis, a era das renováveis continuará a produzir desigualdade”, afirma o documento.

Leia mais: Organizações alertam que debate sobre fim dos combustíveis fósseis não aparece na agenda da COP30
Editado por Jadson Lima

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