Último Tanaru é enterrado em RO após pressão de entidades e determinação da Justiça; Funai pode entregar TI a fazendeiros

Uma questão que já rondava os imbróglios que atrasaram o enterro do Tanaru se tornou ainda mais recorrente: a especulação sobre a Terra Indígena (TI) com cerca de 8 mil hectares (Arte: Matheus Moura/REVISTA CENARIUM)
Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Depois de cobranças de organizações da sociedade civil e determinação do Ministério Público Federal (MPF), os ossos do último indígena do território Tanaru, conhecido como “Índio do Buraco“, foram finalmente enterrados em seu local de origem, a reserva onde viveu sozinho por quase 30 anos, localizada no Sul de Rondônia

O local escolhido para a cerimônia foi a palhoça do indígena, onde o corpo dele foi encontrado, no último mês de agosto. O ritual contou com a presença de funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) e foi conduzido, na última sexta-feira, 4, pelo indígena Purá, da etnia Kanoé, que vive próxima da região. 

Apesar de, enfim, ter “encontrado descanso”, como avaliam os indigenistas, outra questão que já rondava os imbróglios que atrasaram o enterro do Tanaru se tornou ainda mais recorrente: a especulação sobre a Terra Indígena (TI) com cerca de 8 mil hectares. Em um parecer à Justiça Federal, a Funai sinaliza que pode revogar a portaria de restrição de uso que protege o território, ao tempo em que fazendeiros que se dizem donos da terra entraram com pedido junto à pasta para reaver a TI.

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Leia também: Fazendeiros reivindicam o direito de exploração de área onde vivia ‘Índio do Buraco’

Cerimônia de enterro do “Índio do Buraco’ foi conduzida por um indígena da etnia Kanoé, na TI Tanaru, Sul de Rondônia (Funai/Reprodução)

Sepultamento

Tanaru, como o indígena também era conhecido, foi enterrado um dia após o MPF obrigar a Funai a realizar o sepultamento no prazo de cinco dias. A determinação foi proferida na última quinta-feira, 3 de novembro. 

“A Funai se manifestou à Justiça informando que não tinha obrigação legal de sepultar o indígena, mas esse argumento não foi aceito pelo juiz federal porque, por lei, a Funai é a instituição responsável por garantir o respeito à pessoa do indígena e sua preservação cultural”, esclareceu o Ministério Público Federal.

Antes, a ordem do presidente da Funai, Marcelo Xavier, era que o enterro acontecesse somente depois que laudos periciais ficassem prontos, incluindo uma análise genética que visa identificar qual a etnia o “Índio do Buraco” pertencia – até hoje desconhecida por indigenistas.

“Como ele negou estabelecer contato com a sociedade que o matou, isso deveria ter sido respeitado no momento da morte, também. Digo isso, porque há um fetiche, uma necessidade nossa de saber qual a etnia pertencia essa pessoa, quando nossa sociedade deveria, na verdade, estar atenta ao porquê e como nós colaboramos para o genocídio de mais um povo”, disse o indigenista do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), Leonardo Lenin, à REVISTA CENARIUM.

Uma das raras imagens do indígena Tanaru, conhecido como “Índio do Buraco” (Foto: Reprodução)

Informações indicavam que os restos mortais ficaram armazenados na sede da Superintendência da Polícia Federal (PF), em Vilhena, a 706 quilômetros de Porto Velho, depois que foram enviados de volta de Brasília, onde um primeiro laudo apontou morte de causas naturais. À REVISTA CENARIUM, a polícia negou a informação, em outubro. Disse que a “a operação foi toda comandada por Brasília” e que nem a Superintendência Regional saberia informar sobre o caso, alegando, ainda, a falta de meios para armazenar o material.

Polícia Federal, em Rondônia, desconhece informação de que os ossos do “Índio do Buraco” estariam armazenados na Superintendência de Vilhena, no interior do Estado (Iury Lima/CENARIUM)

Na época, entidades como o próprio Opi, além da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e a Survival International repudiaram o descaso com a memória do povo da TI Tanaru e cobraram providências dos órgãos competentes.

Já a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), acionou a Justiça contra o gestor da Fundação Nacional do Índio, pedindo investigação por possíveis crimes praticados por ele na gestão do órgão. 

“A demora é mais um elemento da ação desrespeitosa aos direitos indígenas que a Funai perpetua a partir de seu presidente e da Coordenação-Geral de Índios Isolados, em Brasília”, criticou Leonardo Lenin.

“Tenho certeza absoluta que o Tanaru morreu de forma natural. É isso que a perícia concluiu. No entanto, houve um vilipêndio criminoso do corpo desse indígena. O corpo já saiu de lá [da TI], obviamente em estado inicial de decomposição. Provavelmente ele estaria a mais de 40 dias, ali. E ele retorna, com duas caixas com ossos”, lamentou ainda o indigenista. 

Especulação fundiária

Agora, o que está em jogo é o uso da terra. A indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo (Neidinha Suruí) acredita que a demora para realizar o sepultamento era alimentada, justamente, pela especulação fundiária. “Querem grilar o território. Querem se apropriar desse território”, disse Cardozo à CENARIUM.

Lenin é outro indigenista que observa uma espécie de consentimento do órgão federal com a cessão dos direitos territoriais aos invasores da mata. “Se você observar o despacho da diretoria de proteção territorial, fica evidente a estratégia de entregar o território. E, não entregando o corpo no interior da Terra Indígena Tanaru, fica mais fácil de entregá-la aos fazendeiros”, apontou. 

A própria Funai sinalizou, em um parecer à Justiça Federal, que pode revogar a portaria de restrição de uso que protege a TI Tanaru, que vence em 2025. O território está na mira de fazendeiros que dizem ter comprado a área, em meados dos anos 1970, em um leilão. No documento, o órgão reforça os argumentos dos latifundiários. 

“A afetação da área ocorreu unicamente pela presença do índio isolado (…) Logo, a sua morte faz desaparecer o usufruto e a afetação dessa área, devendo a posse retornar para os particulares titulares da posse ou domínio anteriormente à afetação e restrição do uso”, diz a pasta. 

Área com mais de 8 mil hectares onde o “Índio do Buraco” viveu sozinho por 26 anos. Fica entre quatro municípios do Sul de Rondônia (Mateus Moura/CENARIUM)

Para o indigenista do Opi, se não fosse o “Índio do Buraco”, a reserva já teria sido atingida pelo desmatamento, assim como a floresta foi, ao redor. “Aquela floresta, na imagem de satélite, fica evidente: só existe porque houve a presença dele [feita pelo indígena]. É uma ilha de floresta em meio ao desmatamento”, comparou.  

Terra Indígena Tanaru, com cerca de 8 mil hectares, sobreviveu ao desmatamento ao longo dos anos (Google Earth/Reprodução)

A CENARIUM perguntou à Funai sobre o que, de fato, será feito com a Terra Indígena, bem como se a portaria de restrição de uso será renovada e, também, se o órgão avalia a possibilidade de criar um Parque Indígena ou memorial no local, em respeito à etnia dizimada que ali viveu. A pasta, no entanto, não respondeu até o fechamento desta reportagem. 

Genocídio

O homem misterioso, sobre o qual quase nada se sabe, ganhou o nome de “Índio do Buraco” por conta do hábito de fazer escavações na mata. Algumas dessas covas, como chamam os especialistas, eram usadas para guardar ferramentas. Em outras, ele conseguia se esconder completamente. Por outro lado, até hoje os indigenistas não entendem porque ele fazia isso.

O indígena foi monitorado pela Funai por mais de 20 anos. Nesse tempo, nunca houve a troca de uma única palavra. Ele também quase nunca aceitou presentes, como ferramentas e alimentos. Visto poucas vezes, quase não existem registros dele em foto ou vídeo. 

Em um dos raros registros em vídeo, o “Índio do Buraco” aparece cortando um tronco de árvore com o que parece ser um machado artesanal (Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé/Reprodução)

Quando encontrado morto, em 23 de agosto, ele estava deitado, dentro de uma das mais de 50 palhoças que construiu durante a vida. O corpo estava coberto por vestimentas tradicionais e paramentado com penas de araras, como se esperasse pela morte. Já foi chamado, na imprensa, de homem mais solitário do mundo e se tornou símbolo da resistência dos povos isolados da Amazônia e de todo o Brasil.

A morte dele repercutiu em todo o globo, como exemplo do completo genocídio de uma população nativa da Amazônia. Tudo o que se sabe, é que o povo dele foi dizimado em conflitos contra fazendeiros, madeireiros e outros invasores da floresta no final dos anos 1990.

“Se houver mesmo a entrega da terra aos fazendeiros que chegaram ali, já com a presença dos indígenas, nada mais será do que confirmar o processo de genocídio. Não é nem pior, é mais um passo, uma consolidação disso”, avaliou Leonardo Lenin.

“É extremamente simbólico que o último sobrevivente de um processo de genocídio tenha encantado [o mundo], justamente, em um governo genocida, comandando por uma pessoa que desrespeitou todos os direitos territoriais, de vida e constitucionais desses povos e que teve seus asseclas [adeptos] nos cargos de confiança em Brasília, legitimando esse processo de genocídio”, concluiu o especialista.

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