Um médico anfíbio

Houve um tempo em que se tornar um especialista em doenças infecciosas no Amazonas era um treinamento lato sensu. Todas as vezes que alguma doença desconhecida era notificada à Secretaria de Saúde, um dos jovens médicos residentes da Fundação de Medicina Tropical era convocado a conduzir a investigação in loco. Naquele mês, um possível surto de meningite fora notificado pelas autoridades sanitárias de Tonantins. Com uma mochila nas costas, prontamente embarquei em um pequeno avião anfíbio, que decolou do aeroporto de Manaus e pousou, horas depois, sobre as águas barrentas e tranquilas do Rio Solimões. Fui recebido pelo secretário de Saúde e por um médico americano, um missionário que vivia ali com a família. Fomos até a ala de isolamento, onde estavam internados os pacientes.

Em locais distantes como Tonantins, a investigação epidemiológica estava focada em uma conversa detalhada com vários personagens: gestores, profissionais de saúde, pacientes e seus familiares. À época, computadores pessoais eram pouco práticos e custosos, motivo pelo qual eu andava com um caderninho com capa de couro, onde anotava tudo o que ouvia. É preciso inicialmente quebrar a barreira da comunicação com pessoas isoladas geograficamente, que aprenderam, ao longo de sua história, que os visitantes nem sempre estão bem-intencionados. Investigando o caso índice, ou seja, o primeiro paciente que apresentou a misteriosa doença, foi possível detectar que a própria unidade de saúde onde a população era atendida foi o local do contágio dos demais. O posto não tinha ventilação adequada e encurralava inocentes usuários do sistema de saúde em uma sala pequena e sombria. No interior do Amazonas, a presença de pequenas salas refrigeradas com aparelhos de ar-condicionado transmite mais ideia de luxo e cuidado do que amplos espaços abertos, rodeados de floresta tropical, ou seja, o contrassenso das premissas da arquitetura em saúde e da segurança do paciente.

O médico, único da região, cujo português com sotaque soava como o de alguém que vivia ali há um tempo razoável, prontamente iniciou os antibióticos disponíveis assim que detectou o aumento de casos de uma doença febril com comprometimento do sistema nervoso, o que sugeria o diagnóstico de meningite infecciosa. A atitude acertada, na ausência de um bom laboratório de análises clínicas no município, pode ter sido responsável pela não ocorrência de mortes. Quando eu entrei na enfermaria improvisada, dei de cara com pessoas de todas as idades, em franca recuperação, muitas delas com lesões acastanhadas na pele. Imediatamente concluí que se tratava de doença meningocócica, cujas lesões necróticas na pele são marcantes. Anotações breves no meu caderninho ensejavam o fim da investigação da causa da meningite. Anotações essas que eram tão breves e ingênuas quanto minha astúcia clínica.

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Um dos pacientes me confidenciou que a tintura à base de jenipapo havia salvado sua vida. Foi quando me dei conta de que as lesões que eu espertamente havia julgado serem resultado da infecção bacteriana não passavam de fitoterapia tópica, usada na Amazônia não apenas para curar doenças, mas também para fazer tatuagens. Decidi acordar às 5 horas da manhã do dia seguinte para coletar amostras de líquido cerebral, para exames mais detalhados em Manaus. Eu havia levado várias agulhas descartáveis, e entre 5 e 9 horas da manhã, extraí centenas de gotas do líquido que reveste a medula espinhal, de 30 pessoas, antes da partida do nosso avião anfíbio.

Chegando a Manaus, ainda no final da manhã de um domingo ensolarado, fui direto do aeroporto para o laboratório de bacteriologia do hospital, na tentativa de ainda isolar alguma bactéria. Rossicleia, a chefe do laboratório, achou que se tratava de uma piada examinar 30 amostras de líquido cefalorraquidiano em um aparentemente tranquilo plantão de domingo. Nunca soubemos a causa da meningite, mas eu aprendi muito sobre o jenipapo e suas propriedades curativas.

Aviões anfíbios decolam e pousam na terra ou na água. Médicos anfíbios são aqueles que transitam entre o mundo cosmopolita e o rural, entre a conversa com seu paciente e a bancada do laboratório, entre o conhecido e o desconhecido. O médico anfíbio é o elo perdido entre o Brasil que conhecemos e aquele que se esconde de nós.

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(*)Médico Infectologista

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