Universidades públicas do AM e o projeto silencioso de apagar povos indígenas


Por: Inory Kanamari

19 de novembro de 2025

Na universidade e na sociedade, ainda somos tratados como estrangeiros em nossa própria terra. Enquanto intelectuais brancos falam por nós, somos deslegitimados quando ousamos falar por nós mesmos.

Quantas barreiras, quantos silêncios e quantas humilhações custa a uma pessoa indígena ocupar os espaços reservados à elite branca e rica deste País?

Não começo esse artigo com essa pergunta por acaso. Ela é um chamado à consciência — ou, ao menos, à vergonha. Estamos em pleno século XXI, mas a presença indígena na universidade, na mídia, na política ou na produção intelectual ainda é vista com estranheza, suspeita ou até repulsa.

A ausência de conhecimento real e honesto da população brasileira sobre as questões indígenas não é uma falha — é parte de um projeto histórico de apagamento. Políticas públicas como o Prouni foram criadas para, teoricamente, nos incluir. Mas o que vemos é que, na prática, seguimos sendo mantidos fora dos centros de decisão, ou — quando conseguimos entrar — somos forçados a ocupar lugares subalternizados, como peças simbólicas de uma inclusão que nunca se completa.

Este artigo é escrito por uma mulher indígena, advogada, que conhece na pele o peso da resistência cotidiana contra o racismo, o preconceito e a xenofobia. Venho aqui convidar — ou melhor, desafiar — a sociedade brasileira a refletir sobre a forma como trata os saberes e a presença indígena nos espaços de poder e de produção de conhecimento.

A universidade não nos quer pensantes — apenas exóticos

Na academia, somos raros. Eu nunca tive um professor indígena. Fui a única em muitas salas de aula. E, até hoje, sigo sem escutar nossas línguas, nossas vozes, nossos corpos sendo reconhecidos como legítimos. Quando conseguimos entrar nesses espaços, não é para sermos ouvidos — é para sermos observados, analisados, usados como símbolo de diversidade por quem nunca aceitou, de fato, que indígenas pensam, escrevem e produzem conhecimento.

É nesse cenário que se revela a profunda hipocrisia da academia brasileira, especialmente de muitos professores universitários brancos, ricos e herdeiros de um sistema que sempre nos excluiu. Quando publicam livros sobre “direitos indígenas”, seus trabalhos são exaltados, premiados e colocados como referência mesmo que nunca tenham pisado em um território indígena ou escutado um de nós com respeito.

Quando um profissional indígena publica um artigo, a reação é outra: exigem validação, referências ocidentais, embasamento nos moldes da branquitude acadêmica. Como se o conhecimento só fosse legítimo quando chancelado por quem nunca viveu o que vivemos. Como se precisássemos da autorização de um branco para falar sobre nós mesmos.

Ainda querem que sirvamos — agora com paletó e diploma

Essa lógica não é nova. Apenas se disfarçou. Hoje, os filhos e netos dos antigos coronéis de barranco ocupam cargos nas instituições do Estado — Executivo, Legislativo, Judiciário. Continuam a nos violentar, mas agora com a caneta, com a norma, com a falsa neutralidade dos eventos e debates onde falam sobre nós, sem nós.

Muitas vezes sou convidada a palestrar sobre temas indígenas no Amazonas. E o que vejo são olhares chocados quando digo que cobro pelos meus serviços como advogada e palestrante. Na mentalidade de muitos, indígena não cobra. Indígena serve. A escravidão indígena não acabou — apenas se transformou. A luta contra ela continua todos os dias.

Chega de nos representar sem nos ouvir

Não estamos mais dispostos a aceitar que falem sobre nós sem nos ouvir. Não admitimos mais ser usados como figurantes em eventos onde os protagonistas são sempre os mesmos — acadêmicos, juristas e intelectuais que constroem discursos sobre povos que eles não conhecem e, em muitos casos, não respeitam.

Chegou a hora de dizer claramente: não precisamos que nos validem. Precisamos que nos escutem. Precisamos que nos respeitem. Nosso saber não é inferior, apenas segue outra lógica — ancestral, coletiva, territorial e viva.

Conclusão

A academia precisa escolher: ou segue como instrumento de manutenção do racismo e da exclusão, ou se transforma em espaço de escuta, reparação e reconhecimento dos saberes indígenas. Mas que fique claro: nós não vamos mais pedir licença para entrar. Já estamos aqui. E vamos continuar.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

O que você achou deste conteúdo?

VOLTAR PARA O TOPO
Visão Geral de Privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.