Vale do Madeira: Rio da Morte

Náferson Cruz – Da Revista Cenarium
Imagens – Ricardo Oliveira

NOVA OLINDA DO NORTE (AM) – Final da tarde do dia treze de agosto de 2020, sentado às margens do rio Abacaxis, na Vila que leva o mesmo nome, Carlos Alberto Moraes, o “Seu Mulato”, de 63 anos, admirava o pôr do sol que resplandecia sobre as águas e, ao mesmo tempo, se lamentava, enquanto segurava o remo e a sua malhadeira. “Não lembro de ter passado fase tão difícil como estou passando agora, estamos há dias sem poder pescar devido ao clima de violência na região. Se colocarmos a canoa no rio, também colocamos nossas vidas em risco”.

A frase do pescador de baixa estatura, corpo franzino e com mãos calejadas pela intensa labuta braçal condiz com a realidade vivida por centenas de ribeirinhos e indígenas que habitam o Vale do Madeira, que envolve os municípios de Nova Olinda do Norte e Borba.

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Moradores da vila do Abacaxis foram abordados pela polícia (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

A região situada no Sul do Amazonas convive, há 50 anos, com a exploração ilegal de madeira, minério e tráfico de entorpecentes. No final de julho passado, os conflitos na região acirraram-se, resultando nos assassinatos de dois policiais militares, dois indígenas e quatro ribeirinhos.

O clima de violência que assola a região mudou drasticamente a rotina de pescadores e produtores rurais na pacata Vila Abacaxis, a duas horas de voadeira num motor 40 hp, saindo do Porto de Fontenelle, na costa do município de Nova Olinda do Norte (a 134 quilômetros de Manaus).

“Não posso pescar, tenho medo”, lamenta Carlos Alberto conhecido como “Mulato” (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

Seu Mulato, pescador desde os 12 anos de idade, conta que tinha o hábito de pescar quase todos os dias no rio Abacaxis, mas os recentes casos de torturas e assassinatos o deixaram apreensivo, assim como os demais pescadores da vila que preferem ficar em terra a ter que correr risco nos rios.

“Os recursos estão escassos, trabalho com a pesca e, como não podemos entrar no rio, não tem como obter renda por meio da venda do pescado”

Seu Mulato, pescador

Navegar pelo rio Abacaxis virou sinônimo de coragem para os ribeirinhos que sofrem constantes ameaças impostas pelos traficantes de drogas, madeireiros e garimpeiros que ditam as regras sobre o direito de ir e vir pelo rio.

O pescador Joelson Souza Lareda, de 29 anos, que mora às margens do rio Curupira, relata que há dois meses passou a morar em uma pequena casa de madeira na Vila Abacaxis, próxima de onde mora Seu Mulato. Ele lamenta pela situação e diz que teme pela sua vida e de sua família. “Não tem como ficar lá no Curupira, a situação é bem pior. Somos ameaçados constantemente por traficantes, garimpeiros e até pela polícia, que pede informações a respeito de práticas ilícitas”, contou Lareda.

Casas simples e ruas sem carros compõem a paisagem da antes pacata comunidade (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

O temor também era evidente entre os condutores das pequenas embarcações ancoradas no porto de Fontenelle, nas margens do rio Urariá, que dá acesso aos rios Abacaxis, Curupira, Madeirinha e Canumã.

A equipe da REVISTA CENARIUM esperou por quase duas horas para iniciar a jornada pelo temido rio. Após horas de diálogos, o catraiero Francisco Ferreira da Silva, de 49 anos, apelidado de “Fanta”, se dispôs a conduzir a equipe até a foz do rio Abacaxis.

Partimos por volta das 10h, enfrentando uma temperatura de 37ºC. Foram quase duas horas de tensão navegando pelas águas barrentas do rio Urariá até a Vila Abacaxis.

Segundo relatos dos ribeirinhos, a região é conhecida pela intensa movimentação de embarcações, no entanto, durante o percurso, apenas uma lancha da polícia estadual foi avistada, confirmando o receio dos ribeirinhos de trafegar pelos rios da região. Em frente aos vilarejos e comunidades, era notória a aglomeração de embarcações.

Na região do rio Abacaxis, serviços como acesso à saúde, à educação e à cultura, pela logística da região, não chegam por meio das ruas, rodovias ou aeroportos. Mas pelos rios, por meio dos inúmeros barcos que modelam a vida de quem vive à margem dos rios.

Deixar de navegar pelas águas do Urariá, Canumã e Abacaxis representa um revés na economia e na subsistência dos ribeirinhos da região. “Esse barco é meu meio de vida. Nós saímos todas as manhãs. É assim que sobrevivemos. Então, sem o barco, a gente não trabalha”, completou Francisco Silva, o “Fanta”.

À procura de tranquilidade, mas nem tanto

“Não é de hoje que vem acontecendo esses crimes na região. Os ribeirinhos estão cansados disso e estamos a mercê dos criminosos, estamos saturados dessa situação”, diz a cozinheira Cliciane Jesus da Silva, de 29 anos, proprietária de uma pequena cantina, simples e aconchegante, na Foz do Canumã, distrito de Borba, município a 150 quilômetros de Manaus, fronteira com Nova Olinda e Maués.

Antes de fixar moradia na comunidade, Cliciane conta que já passou por “maus bocados” em razão da violência, quando residia no bairro da Compensa, Zona Oeste da capital amazonense. “O barulho de tiro, brigas, roubos e assaltos eram frequentes. Não suportei viver naquela situação e resolvi voltar com a minha família para a Foz, entretanto, jamais imaginei que encontraria esse clima de violência nesta região”, comentou.

Crianças brincam no encontro das águas do rio Abacaxis e rio Urariá (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

Esboçando um sorriso, a cozinheira de “mão cheia” Cliciane divide dois cômodos da pequena casa de madeira com o marido e quatro filhos. Ela conta que, desde as ocorrências de assassinatos de indígenas e ribeirinhos, a venda de refeição na sua cantina despencou. “As pessoas estão com receio de sair de casa, até o movimento da pesca cessou, e o peixe que chega, atende apenas a nossa refeição diária, não há o bastante para demanda comercial”, lamenta.

Mistério no assassinato de indígenas

O acesso à Foz do Canumã se dá pelo rio Urariá, o mesmo que leva à confluência do Laguinho, na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, região do Laguinho, Aldeia Munduruku.

Na localidade, banhada pelo rio de águas escuras, a reportagem flagrou, na manhã de 14 de agosto, o momento em que os mergulhadores do Corpo de Bombeiros faziam a busca pelo corpo de Josivan Lopes, de 18 anos. Segundo os moradores da região, o jovem indígena teria sido vítima de tortura praticada pela polícia.

O corpo do jovem indígena Munduruku continua desaparecido, segundo a polícia (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

O irmão dele, Josimar Moraes Lopes, de 25 anos, teve o corpo encontrado na mesma localidade, no dia 7 de agosto. Os irmãos foram vistos, pela última vez, com vida, por volta das 8h do dia 5 agosto. Conforme relatos, os irmãos Lopes estavam viajando em uma rabeta com destino a Nova Olinda do Norte.

Enquanto a reportagem aguardava o desfecho das buscas pelo corpo, uma lancha que estava com uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai) e lideranças indígenas se aproximou e, posteriormente, um agente da Funai se manifestou, dizendo: “Vocês não podem ficar aqui, essa é uma área indígena e vocês não têm autorização para ficar aqui, porém, há lideranças indígenas aqui na lancha e eles podem decidir isso”, disse o agente da Fundação, que preferiu não se identificar.

Em seguida, a cacica Alessandra Munduruku, no interior da embarcação, tomou a frente da situação e se posicionou, argumentando que os indígenas que residem ali, na região do Laguinho, não têm nada a ver com a situação de conflito que envolve as comunidades localizadas no rio Abacaxis.

Segundo ela, os indígenas temem que outros entes sofram com a mesma brutalidade que foi praticada aos dois membros de sua etnia. Enquanto conversava com a reportagem, ‘estranhamente’ outra liderança indígena interferiu e convidou a equipe de reportagem a se retirar da Terra Indígena. “Vamos conversar com vocês numa outra ocasião, mas, agora, peço que vocês deixem nossa área”, proferiu o indígena. O corpo do jovem Josivan ainda não foi encontrado.

Receio em navegar pelos rios

Desde quando o clima de violência pairou sobre a região do rio Abacaxis, o pescador e produtor rural, Joaquim Siqueira Lima, 51 anos, morador da Vila Abacaxis, viu a venda de pescado e do açaí despencar consideravelmente. Ele diz que há demanda para aquisição de seus produtos, mas tem receio de enfrentar duas horas e meia e ser abordado por criminosos e pela polícia. “Temo pela minha vida, ninguém sabe realmente o que está acontecendo por aqui, estamos assustados”, ressaltou Joaquim, enquanto descascava tucumã sentado a frente de sua casa.

No mesmo dia, quinta-feira, 13 de agosto, duas lanchas com aproximadamente 20 oficiais do Comando de Operações Especiais (COE) do Amazonas aportaram na Vila Abacaxis. Abordados pele reportagem, os oficiais disseram apenas que estavam fiscalizando a área e pediram para não serem filmados ou fotografados. A lancha estava equipada com armas de grosso calibre. Após 15 minutos partiram descendo o rio Abacaxis.

A Justiça Federal, em nova decisão, determina que o Estado do Amazonas, por meio da Secretaria de Segurança Pública (SSP), pare de impedir a circulação de indígenas e ribeirinhos na região do rio Abacaxis, entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte. A ordem judicial vem após operação para combater o tráfico de drogas, realizada pela SSP, e que resultou na morte de policiais militares e membros da população local.
Caso o Estado não cumpra a decisão, sofrerá multa diária de R$ 100 mil.

Abacaxis: área estratégica

A região do rio Abacaxis, segundo os ribeirinhos, por ser uma área de difícil acesso é estrategicamente propícia a atividades clandestinas como o tráfico de drogas, a exploração ilegal de madeira e de ouro. Os conflitos e assassinatos são recorrentes há quase 50 anos e se intensificaram no final do mês de julho deste ano. Em duas semanas foram oito assassinatos, dos quais, dois corpos continuam desaparecidos. A localidade faz fronteira com os municípios de Nova Olinda do Norte, Borba e Maués. Também é interligada pelos rios Urariá, Canumã, Madeirinha, Laguinho e Marimari. Também foi informado pelos ribeirinhos que na região há indícios de pistas clandestinas para pousos e decolagens aeronaves. Segundo relatos, aviões de pequeno porte são vistos com frequência naquelas imediações.

Danos aos povos indígenas

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou inquérito Civil para apurar os danos aos povos indígenas e comunidades tradicionais decorrentes da operação deflagrada pela Polícia Militar do Amazonas no dia 3 de agosto deste ano, na região do rio Abacaxis e da Terra Indígena Kwatá-Laranjal, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, no Vale do Rio Madeira. No documento que a REVISTA CENARIUM teve acesso, o procurador da República, Fernando Meloto Soave, considera os postulados da dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à inviolabilidade da casa, bem como o direito a não ser submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante e a liberdade de associação, proclamados pela Constituição Federal.

Ele também considera as informações levadas a conhecimento do MPF, relativas aos supostos abusos e ilegalidades da operação deflagrada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP-AM) no dia três de agosto, no rio Abacaxis, entre os municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, de que ao longo da operação, foram noticiadas diversas irregularidades, notadamente a condução coercitiva de moradores, a proibição de tráfego no rio, o desligamento ilegal das antenas de comunicação rurais, a apreensão de aparelhos celulares e documentos, bem como a prática de tortura contra a liderança da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis.

O procurador determina a expedição de ofício à presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para conhecimento dos fatos e adoção das providências de proteção dos indígenas Maraguás e Mundurukus, e assentados do Projeto Abacaxis. E solicita à Polícia Federal do Amazonas informações atualizadas sobre as diligências efetuadas na região, bem como informações sobre atuação permanente de base de vigilância na região.

Em resposta ao requerimento do MPF e de outras instituições, a Força Nacional deslocou 30 agentes no início deste mês, para a região do rio Abacaxis. O objetivo é reforçar a segurança no local e garantir que a Polícia Federal investigue as violações cometidas contra os povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam a região onde vem sendo realizada, nas últimas semanas, uma ação policial da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado do Amazonas.

Os conflitos em Nova Olinda do Norte começaram no fim do mês de junho, depois que o secretário de Governo do Estado, Saulo Moyses Costa, foi baleado enquanto pescava. A Secretaria de Segurança montou uma operação contra uma suposta organização criminosa ligada ao tráfico de drogas.

No primeiro dia da operação, em 3 de agosto, dois policiais militares foram assassinados em um confronto com criminosos na região do Rio Abacaxis, e outros dois ficaram feridos. Mais de 50 policiais foram enviados à região. Desde então, moradores de comunidades indígenas e ribeirinhas denunciam abusos por parte de policiais, como tortura e invasão de residências e aldeias.

No dia 21 deste mês, o Tribunal Regional Federal 1ª Região (TRF-1) determinou a suspensão imediata da operação policial da Secretaria de Estado de Segurança Publica do Amazonas (SSP-AM) no rio Abacaxis. A decisão atende ao pedido do Ministério Publico Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU). Os órgãos apontaram a ocorrência de diversas violações aos direitos humanos, incluindo prática de tortura e homicídio, na área ocupada por comunidades tradicionais e povos indígenas.

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