Vergonha e medo dificultam denúncias de abuso sexual entre meninos
Por: Cenarium*
01 de setembro de 2025
MANAUS (AM) – Pedro (nome fictício) tinha apenas quatro anos quando começou a ser violentado por um primo adolescente. Guardou segredo por décadas.
Só aos 61, já aposentado e avô, conseguiu contar pela primeira vez o que aconteceu. “Sempre achei que iam rir de mim, que iam pensar que eu era gay“, disse ao projeto Memórias Masculinas. O silêncio o acompanhou por quase toda a vida — e o adoecimento também.
Casos como o dele são mais comuns do que se imagina. Segundo o Disque 100, uma em cada cinco vítimas de violência sexual infantil no Brasil é menino. Mas os especialistas alertam que o número real é muito maior: meninos demoram, em média, 15 a 20 anos para revelar o que viveram. Muitos nunca falam.
Segundo a pedagoga Cecília Lauriano, especialista em trauma, o cérebro recorre a mecanismos de defesa como dissociação e repressão. “Muitos meninos passam a vida tentando enterrar a memória. Só quando encontram gatilhos ou um espaço de acolhimento é que conseguem acessar a lembrança e nomear o que viveram.”
“A vergonha e o medo de serem vistos como menos homens sustentam esse silêncio“, explica Itamar Gonçalves, que atua na Childhood Brasil como superintendente de advocacy (cargo que visa influenciar a aprovação e execução de políticas públicas).
Denis G. Ferreira, pesquisador e fundador da ONG Memórias Masculinas, acrescenta que “entre 60% e 80% dos abusos são cometidos por pessoas próximas, geralmente familiares”.
A proximidade do agressor, somada às ameaças, aprisiona a criança. “Se você contar, ninguém vai acreditar“, repetem os abusadores.
Quando a violência parte de outro homem, o menino ainda carrega o peso de associar a experiência à própria orientação sexual. “Isso gera uma confusão que pode durar a vida inteira“, completa Ferreira.
Gonçalves (Childhood Brasil) lembra que muitos abusadores relatam também terem sido vítimas na infância. “É um ciclo de violência que se repete e, sem intervenção, a vítima de hoje pode se tornar o agressor de amanhã.”
A cultura machista reforça esse ciclo. “Se o agressor for mulher, dizem que o menino teve sorte. Se for homem, a masculinidade dele é questionada“, afirma Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta.
Para a pediatra especializada em trauma na infância Priscila Xavier, esse estigma molda até a forma como o trauma se manifesta. “Meninas tendem a internalizar, com depressão e baixa autoestima. Já meninos externalizam mais, com agressividade, impulsividade e condutas de risco.”
Sinais de alerta em meninos incluem mudanças bruscas de comportamento (agressividade, isolamento, queda no rendimento escolar); medos novos e inexplicáveis, como evitar pessoas ou lugares específicos; pesadelos frequentes; dores físicas sem causa aparente; e comportamentos sexualizados fora da idade.
Pesquisas apontam ainda que as marcas do abuso se arrastam pela vida adulta: dificuldade em criar vínculos duradouros, maior risco de automutilação, uso de drogas e ideação suicida.
“O trauma não só aprisiona, como adoece, mas a cura é possível quando a vítima encontra um espaço seguro para falar“, afirma a pediatra Priscila.
Andrio Robert, doutor em educação e coordenador editorial do Instituto Papo de Homem, destaca que a homofobia agrava o silêncio.
Leia na íntegra: Vergonha e medo silenciam meninos em casos de abuso sexual
“Ainda existe a crença de que a violência sexual pode tornar alguém gay. É um discurso devastador para a saúde mental dos sobreviventes.” Para ele, é urgente criar espaços de conversa entre homens: “Quando um decide falar, pode abrir caminho para muitos outros“.
A pedagoga Cecília Lauriano acrescenta que o medo vai além dos rótulos sexuais e induz a sentimentos de rejeição e humilhação.
Ela considera fundamental psicoeducar os sobreviventes, ou seja, explicar que reações fisiológicas como ereção ou orgasmo durante o abuso não significam consentimento, mas respostas automáticas do corpo.
A falta de estrutura também pesa no silêncio. “Os meninos não são acolhidos em espaços preparados para eles. Muitas vezes, em delegacias da mulher“, diz Itamar. Segundo Luciana Temer, isso pode levar à revitimização, quando o atendimento inadequado aprofunda a dor em vez de acolher.
Romper o ciclo exige ação coletiva. “O silêncio é alimentado por tabus de gênero e pela falta de políticas públicas voltadas para meninos“, avalia Luciana.
Iniciativas como o Memórias Masculinas já oferecem atendimento gratuito e sigiloso para homens adultos. “Falar sobre a violência é o primeiro passo para ressignificá-la”, conclui Denis Ferreira. “Contar pode aliviar uma carga de décadas.”