Violência política no Brasil está matando a democracia, diz relator da ONU
02 de maio de 2022
Ato na esquina democrática reúne milhares a favor da democracia e contra o golpe (Guilherme Santos/Sul21)
Com informações da Folha de S. Paulo
SÃO PAULO – A crescente violência política — intensificada após o assassinato ainda não solucionado da vereadora Marielle Franco —, a proliferação de desinformação, o silenciamento da sociedade civil organizada, o processo de criminalização de movimentos sociais e o ataque a jornalistas e às populações tradicionais estão restringindo o espaço cívico no Brasil.
Para o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a liberdade de reunião e de associação, Clément Nyaletsossi Voule, esses são vetores de uma crise que colocou a democracia brasileira a perigo.
Jurista nascido no Togo, na África Ocidental, Voule tem como mandato, entre outros, o monitoramento da garantia de acesso à Justiça e participação na vida pública, uma liberdade crucial para qualquer período de eleições e que parece estar especialmente ameaçada pela violência no Brasil de hoje.
O jurista togolês Clément Nyaletsossi Voule, relator especial da ONU sobre a liberdade de reunião e de associação, em São Paulo, durante missão ao Brasil – Eduardo Knapp/ Folhapress
”Eu condeno qualquer medida de restrição de participação social e política, como a restrição à consulta pública sobre políticas e processos decisórios, ilustrada pelo fechamento de 650 conselhos no país”, aponta ele. “E também pelo excessivo uso da força e violência durante protestos e operações policiais no Brasil. A falta de um protocolo público e unificado para as forças de segurança tem gerado violações de direitos humanos.”
Violência racial e de gênero
Para ele, a violência política no país tem um recorte racial e de gênero, incidindo de maneira mais contundente entre mulheres negras, em especial ligadas à comunidade LGBTQIA+. “Quando a participação política de qualquer pessoa coloca sua vida em risco é porque estão matando a democracia.”
Voule esteve no Brasil, no início de abril, em missão que durou 12 dias. O período foi apertado para as visitas a comunidades de Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. E para a agenda com autoridades do Judiciário e da Procuradoria, parlamentares e ministros, dentre os quais chamou a atenção a ausência da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Menos de duas semanas, no entanto, foram suficientes para o relator testemunhar a chegada ao Congresso de uma proposta presidencial de recrudescimento da lei antiterrorismo, que ameaça movimentos sociais, e a tentativa de censura à manifestação política de artistas durante o festival Lollapalooza.
A liberdade de expressão vem sendo evocada no Brasil para atacar pessoas, grupos e instituições. Quais são seus limites?
Os limites são o da desinformação e o do respeito aos direitos e à dignidade dos outros. São aqueles providos pela Constituição e pelo direito internacional. A liberdade de expressão permite a você levantar preocupações e críticas a algo ou a alguém, mas não lhe dá a permissão de desinformar ou de atacar os direitos dos outros ou a sua dignidade. Discursos de ódio violam liberdades e direitos fundamentais.
Pelo que eu vi no Brasil, há um movimento de desinformação e de ataque orquestrado ligado ao aumento no uso das mídias sociais. Essas são ferramentas utilizadas por 85% dos brasileiros e precisam ser usadas para a sociedade viver junto, porque elas expandem a nossa liberdade e o nosso espaço cívico, o que é muito positivo.
Mas o uso que tem sido feito dessas ferramentas por algumas lideranças é algo perigoso. Elas são usadas para propagar desinformação e violência contra certos grupos, indivíduos e instituições. E a desinformação é algo que destrói a democracia. Também estão sendo usadas para assediar e atacar a dignidade dos outros online, o que tem ocorrido com frequência contra jornalistas profissionais, em especial as mulheres que têm sido alvo de campanhas de difamação, particularmente por aplicativos de mensagens.
Qual é a responsabilidade das empresas de tecnologia neste cenário?
Empresas têm responsabilidade e precisam investir em monitoramento de conteúdo, trabalhando em cooperação com sistemas de Justiça e autoridades locais para garantir que suas plataformas não sejam usadas contra a democracia e os direitos humanos. Também é obrigação de qualquer autoridade de Estado, incluindo o Judiciário, garantir que provedores de internet e de plataformas obedeçam às leis do país que estão de acordo com parâmetros internacionais. Eles precisam garantir que essas plataformas não serão usadas para enfraquecer o regime democrático, ameaçando-o.
Como você avalia o ataque a jornalistas hoje no país?
A mídia é uma guardiã fundamental da democracia, responsável por informar da maneira mais imparcial possível e por revelar à arena pública as transgressões cometidas por governos e autoridades. Ela também é essencial na cobertura de protestos porque registra uso excessivo da força e abusos cometidos por policiais ou por participantes de protestos. No Brasil, a imprensa também vem sendo acuada em atos e manifestações de alguns grupos, o que é lamentável. Quando a mídia é atacada e a liberdade de atuação dos jornalistas se restringe, perde a democracia, porque a livre circulação de informações fica comprometida.
Durante sua missão ao Brasil, o presidente Jair Bolsonaro propôs uma mudança na lei antiterrorismo, que vem sendo criticada por defensores de direitos humanos.
Debati com as autoridades brasileiras. Ao ler a proposta [do presidente], alguém pode se perguntar: o Brasil está sob a ação de algum grupo terrorista? Existe no Brasil o medo que vemos em outros países que sofreram ataques terroristas de fato? Então, qual é o propósito dessa lei antiterrorismo?
Do meu ponto de vista, a partir do que li e do que ouvi nas comunidades, o propósito é o de criminalizar movimentos sociais. As emendas vão criar tensões com a sociedade civil e restringir o trabalho de organizações sociais.
Por que isso é problemático?
Movimentos sociais são importantes em preservar direitos democráticos porque apontam para os desafios que as comunidades estão enfrentando e utilizam sua capacidade de mobilização como instrumento de pressão. Se elas são silenciadas, perde-se um canal de comunicação entre sociedade e autoridades e também um meio de denúncia a organismos internacionais.
Pessoas preparam homenagem em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, para vereadora assassinada há dois anos, Marielle Franco, e seu motorista Anderson Gomes (Ricardo Borges/Folhapress)
O que você ouviu de autoridades e de comunidades no país?
Autoridades se dividem: algumas reconhecem os problemas, outras os negam e há aquelas que dizem que minha percepção está equivocada. Sempre respondo que estou disposto a corrigir minha percepção a partir de evidências.
Nas comunidades, muitas pessoas levantaram problemas relacionados à impunidade, em especial nos casos que envolvem forças de segurança. Há tantos e tantos casos, um deles sendo o de Marielle Franco, que deteriorou o ambiente político. Com a aproximação das eleições, como fica a segurança dos candidatos?
O assassinato de Marielle Franco materializou um tipo de violência política que parece estar crescendo. Como isso interfere nas eleições?
A ausência de uma conclusão do caso Marielle, quatro anos depois da execução de uma representante eleita, cria um ambiente de impunidade e de medo. Sabemos que violações de direitos ocorrem, a questão é como o Estado e o Judiciário lidam com elas. O Brasil tem um sistema de Justiça forte, mas que não entrega decisões em tempo razoável, e isso prejudica o acesso à Justiça.
Há muitas mulheres, especialmente afrodescendentes e LGBTQIA+, que estão entrando nessa campanha com medo por suas vidas, mas também com receio de sofrer o assédio digital a que muitas já foram submetidas. Se essas pessoas tiverem medo a ponto de desistirem do pleito, é porque estão matando a democracia. Estão impedindo as pessoas de participarem do processo e de exercerem suas liberdades fundamentais.
Então o Brasil está matando sua democracia?
Diria que a democracia no Brasil está em crise. E é importante que o Estado olhe para esses casos e para esse ambiente de violência, intensificado pelo armamento da população. A lei que facilitou a compra de armas e munições colabora para esse ambiente de temor em torno das eleições.
O atual presidente tem levantado suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral brasileiro. De que maneira isso agrava o cenário?
Estive nas cortes eleitorais e eles foram categóricos: não há evidência de qualquer falha ou fragilidade. Por outro lado, se o sistema perde a confiança das pessoas, elas podem não votar ou não reconhecer as eleições. Desacreditar o sistema é abrir caminho para que as pessoas não aceitem os resultados. E o que acontece nesses casos? Pessoas podem usar violência. Enfraquecer o poder do voto, minando a própria democracia, coloca o país numa situação muito perigosa.
Que tipo de perigo?
O caso mais próximo é o dos EUA, onde houve uma crise recente ligada ao sistema eleitoral e um levante [que levou à invasão do Capitólio, em janeiro de 2021]. Não dá para comparar, mas as autoridades do Brasil precisam tomar medidas para prevenir possíveis consequências, ou ninguém estará a salvo. E a comunidade internacional pode ajudar o Brasil nisso. Se essa polarização seguir, observadores internacionais podem vir e monitorar o processo.
Raio-X
Clément Nyaletsossi Voule, 51, jurista nascido no Togo, na África Ocidental, foi apontado em 2018 como relator especial da ONU sobre a liberdade de reunião e de associação, cujo trabalho inclui eleições e oportunidades de participação política da sociedade. Antes, Voule foi secretário-geral da Anistia Internacional no Togo e diretor do programa africano do International Service for Human Rights, (ISHR), em Genebra (Suíça).
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