Viúva de Bruno diz que assassinato foi afronta inédita e compara desdobramentos com o que aconteceu com Marielle

Beatriz e Bruno. (Arquivo pessoal)
Com informações da Folha de S.Paulo

BRASÍLIA – Viúva de Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari em 5 de junho, a antropóloga Beatriz de Almeida Matos, 43, compara os desdobramentos da morte do indigenista e do jornalista britânico Dom Phillips com os da execução da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018.

“Eu vejo essa coisa do [presidente Jair] Bolsonaro falar [que era uma aventura não recomendada], do presidente da Funai [Marcelo Xavier, tentar descredibilizar o trabalho dele]… A gente não sabe até acontecer com a gente, mas não é uma coisa de honra, é muito escroto as pessoas vilipendiarem a memória de alguém. Como quando rasgaram a placa da Marielle”, declara, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.

Ela também afirma que a forma como os dois foram assassinados é uma “afronta inédita” e que o caso ocorre em meio a uma escalada de violência relacionada a ações do governo Bolsonaro.

PUBLICIDADE

“De 2019 para cá, pessoas que trabalham em vários lugares estão vendo a violência escalar; madeireiros, garimpeiros, ficarem cada vez mais abusados, mais seguros para fazer ilícitos dentro das terras indígenas. É um clima de que pode tudo”, diz.

Um homem e uma mulher, de camisetas brancas, lado a lado
Bruno Pereira (esq.) com Beatriz de Almeida Matos, em um barco – Arquivo Pessoal

Com o que o Bruno vinha trabalhando? 

Ele e o Beto [Marubo, liderança indígena no Vale do Javari] estavam fazendo um trabalho de envolver os próprios indígenas na proteção do território, tanto que a Univaja [União dos Povos Indígenas do Vale do Javari] tem um discurso muito protetivo dos não contatados. É muito triste que isso seja uma ameaça, um risco para ele.

Você viveu por anos no Vale do Javari. Qual é a sua visão sobre a atual situação de lá? 

Em 2019, eu estava no Vale do Javari, em uma aldeia Korubo, exatamente quando mataram o Maxciel [Pereira, servidor da Funai assassinado em Tabatinga]. Todo mundo ficou muito assustado, chocado. Eu passei no lugar onde aconteceu, é um lugar de trânsito, cheio de canoa, de gente. É impressionante a coragem de se fazer isso assim, à luz do dia. Ele trabalhava nessas ações de fiscalização junto com o Bruno, junto com o Beto [Marubo]. Isso deu aquela sensação de ter algo errado acontecendo.

Na sequência começou a acontecer de pescadores passarem na base [da Funai] atirando. O Bruno falava disso, dessa sensação. Não é só no Vale do Javari, é no Brasil inteiro. De 2019 para cá, pessoas que trabalham em vários lugares estão vendo a violência escalar; madeireiros, garimpeiros, ficarem cada vez mais abusados, mais seguros para fazer ilícitos dentro das terras Indígenas. É um clima de que pode tudo.

O caso do Bruno tem relação com o do Maxciel? 

Sempre teve esse conflito de pescador na terra indígena, mas depois a gente começa a associar a morte do Maxciel com essa sequência de acontecimentos. Eu acho que tem a ver com a morte do Maxciel não ter sido apurada, com um clima de impunidade no sentido de que você pode mexer com os indígenas que nada vai acontecer, ou com os caras da Funai.

Uma coisa é entrar escondido, tentar fazer a pesca ilegal sem que o pessoal da base [da Funai] veja. Atirar na base é provocação. E aí fazem isso e não acontece nada? E aí o ministro do Meio Ambiente se reúne com garimpeiros. Acho que essas coisas têm relação direta.

Você estava com medo? Qual foi seu último contato com o Bruno? 

Antes [da viagem em que foi assassinado], ele tinha ido para um encontro com indígenas e me mandou fotos, vídeos da festa com os Marubos. Aí de volta para Atalaia [do Norte], era quinta-feira [2], eu estava dando aula na sala, recebi uma ligação. Nem atendi na hora, retornei no intervalo. Ele falou que estava com um cartão de crédito para vencer e o aplicativo do banco estava com problema. Ele falou: “Estou indo para uma reunião nas comunidades e volto rapidinho. Acho que segunda-feira (que é quando o cartão ia vencer) eu já estou online”. Ele estava tranquilo. Eu também.

O Bruno contava das ameaças que ele recebia? 

Ele não estava tão ingênuo quanto eu. Acho que ele me preservava de certas coisas, porque, por exemplo, a ameaça da carta que citava ele eu não soube. Eu sabia que o tipo de trabalho que estava fazendo podia incomodar algumas pessoas, mas esse acontecimento [o assassinato] mudou um pouco a minha visão.

As pessoas ali respeitavam muito os indígenas. Sempre houve violência lá, briga de bar, dívida com tráfico. Mas isso que aconteceu, da pesca ilegal, atingir em plena luz do dia alguém tão ligado aos indígenas e um jornalista inglês.

Para nós aqui, do Sudeste, parece ermo, mas aquele rio [Itaquaí, onde Bruno foi morto] é uma avenida, anda gente pra caramba lá. É muito fora da curva o que aconteceu. Eu sempre andei naquele rio, navegava por oito dias com os indígenas e nunca tive medo.

Essa morte do Bruno e do Dom afeta os indígenas diretamente, eles estavam com a Univaja. É uma afronta inédita. Claro, antes da demarcação, historicamente, havia conflitos com morte de indígenas. Mas é difícil para mim entender como um cara faz isso em plena luz do dia, no meio do rio, perseguindo um barco, uma coisa quase Hollywood, surreal.

Por que surreal? 

Tinham oportunidades menos espetaculosas. Por que foi dessa maneira tão exposta? Pensa no caso da Marielle, por exemplo. Foi executada daquela maneira porque tinha que ser com todas as características de uma execução, para o Brasil ver. Ninguém forjou um assalto, por exemplo. No caso do Bruno, parece a mesma coisa no sentido de que poderiam forjar um assalto, uma briga de bar, sei lá.

Pensa em fazer algo em memória do Bruno? 

Eu vou cuidar da memória dele, do legado dele. Eu vejo essa coisa do Bolsonaro falar [que era uma aventura não recomendada], do presidente da Funai [Marcelo Xavier, tentar descredibilizar o trabalho dele]… A gente não sabe até acontecer com a gente, mas não é uma coisa de honra, é muito escroto as pessoas vilipendiarem a memória de alguém. Como quando rasgaram a placa da Marielle. Agora eu sei o que a família sentiu, você sente no seu corpo, dá muito ódio, raiva.

Eu também comparo a morte do Bruno com a do Chico Mendes, da Dorothy Stang. Mas eu tenho pensado muito na Marielle. Claro, é diferente, mas o caso dela foi um ponto de virada, ainda não foi solucionado, tem esse lado de manter essa história viva. Tem esse sentimento: esse negócio tem que dar em alguma coisa, né? Não pode deixar essa história ficar esquecida, a gente não vai deixar.

Como você tem lidado com a morte dele? 

No começo fiquei muito ansiosa, não dormia nada. Tem muita burocracia para lidar. E tive um instinto de preservação dos meninos [Bruno e Beatriz são país de filhos de três e dois anos], acho que não chorei na frente deles, me tranco no quarto. Tanto que nesse momento da entrevista [no dia 7 de julho], eu pedi para minha mãe sair e passear com eles.

Tento não me prostrar em hora nenhuma. Não sei se eu vou conseguir segurar isso [muito tempo], mas acho que eu vou. Até porque o Bruno ficava muito tempo fora, incomunicável, em aldeia. Era normal isso na nossa relação, eu também fiz isso muito na vida. Até os meninos estavam acostumados. Isso me deu esse fôlego, talvez, para ele estar ausente.

Até agora era como se ele fosse chegar, como se tivesse prolongado um pouco mais a viagem. Ultimamente tenho sentido mais saudades, estou um pouco mais triste. É com o tempo que a ausência real dele está fazendo parte da vida.

Indígenas de todo o país fizeram rituais por causa da morte do Bruno. 

É louco, porque eu estudei isso, minha tese de doutorado tem uma parte só sobre corpo e alma. Eu já participei muito do luto dos matsés. Segundo as concepções indígenas que estudei mais a fundo, as pessoas, os lugares, um animal, o rio, tudo é sujeito. Então tudo com quem você tem relação, o lugar que você cresceu, as pessoas que você conviveu, as coisas que você fez, tudo carrega o seu espírito.

A pessoa é esse monte de relação que ela construiu com as coisas e as pessoas. Quando a pessoa morre, permanece a relação. Isso para os indígenas é o espírito. E para mim fez sentido falar isso para os meus filhos, que o Bruno está com eles, está neles, é eles agora. É como se aquilo que era o Bruno se dispersou, não tem mais aquilo que o condensa.

[Esses rituais] são coisas que nunca vi eles fazerem para quem não fosse parente. Eles estão corporalmente tratando o Bruno como parente. Até essa luta política dele, eles estão reivindicando. Os xukuru, por exemplo, que o Bruno nunca visitou, foram no velório para concretizar esse parentesco com o espírito dele. Assim como os matsé, os kanamari, os marubo. Eles estão atualizando esse parentesco com ele, com o espírito dele.

Você pretende voltar ao Vale do Javari e levar seus filhos? 

Eu trabalho lá há 20 anos, não sei fazer outra coisa, então com certeza absoluta vou levar eles lá. Desde que não seja uma ameaça à vida deles, né?

A casa que a gente construiu lá tem um açude que a gente queria ensinar os meninos a andar de canoa, a ideia era ter aquela casa para as crianças irem nas férias. Não é possível que esses caras [que assassinaram o Bruno] vão me tirar isso também.

Sou professora, amo essa vida de dar aula e fazer campo com os indígenas, quero levar meus filhos para fazer isso também, quero que eles tenham essa vivência de mato que o pai deles tinha. Quero que eles aprendam coisas diferentes do que só as coisas da classe média urbana brasileira. Claro, quero que estudem em escolas boas, passem no vestibular, mas tenham também essa outra vivência, que eu tive a sorte de ter.


Raio-X

Beatriz de Almeida Matos, 43
Formada em ciências sociais pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado, doutorado e pós-doutorado em antropologia social no Museu Nacional, pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atualmente, é professora de antropologia e etnologia indígena da UFPA (Universidade Federal do Pará).

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.