2020, o ano em que vivemos acuados

Acho que nem tinha dez minutos do documentário “Cercados”, no Globoplay, quando tive de parar para chorar, mas chorar de verdade, com lágrimas e soluços. Faz dois anos, dia 29 de dezembro, que meu pai morreu (não foi de Covid) e vi em seu velório a cena mais bruta da minha vida, seu caixão sendo parafusado. A cena dos caixões enfileirados em um cemitério de Manaus sendo cobertos com terra por um trator, uma cena absurdamente brutal, me fez desabar. Por mim, por aquelas pessoas que perdiam seus parentes, por aquela mulher que fala em off no documentário enquanto a cena surreal dos caixões enfileirados sendo cobertos por terra por um trator, repito, aparecia: “Meu pai lutou a vida toda para não ter direito a uma cruz”.

O documentário, de quase duas horas, me fez chorar outras vezes, de forma mais contida. Ver vazias por conta do Covid as redações do Estadão e da Folha, onde passei parte de minha vida adulta trabalhando, me deu tristeza. Me deu angústia a desesperança de meus colegas jornalistas, sendo humilhados e xingados pela horda enlouquecida da claque de Jair Bolsonaro em frente ao Planalto. Me deu desesperança as cenas finais de as pessoas (nós) enclausuradas em suas casas assistindo ao Jornal Nacional, impávidas, indefesas, impotentes. Ver cenas de pessoas insanas sem máscara, negacionistas, terraplanistas, peitando um vírus desconhecido e fatal, burlando o isolamento e, quase sempre, se levando ou levando a próximos à solidão do intubamento e da morte.

E minha revolta, minha dor, não diminuiu por estar sendo testemunha dessa mesma história e nada no documentário ser novidade para mim, nem mesmo nenhuma das fake news. “É muito cansativo ser testemunha da história”, disse o rapper Emicida. É. É muito cansativo, está sendo. Estamos todos terminando esse 2020 cansados, exaustos, cercados, acuados dentro de nossas próprias casas, com um desgoverno que não nos cuidou, que não nos ama, que não quer nos consolar e abraçar virtualmente.

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Um governo homicida sem planos para nos vacinar ano que vem. Terminamos o ano cansados e sem esperança. Especialmente para os que mais precisam, eles vão sofrer ainda mais. O auxílio emergencial que ajudou a tantos, que o governo federal foi obrigado a pagar pelo Congresso, vai acabar, então quem precisou e precisa, vai ter de contar com nada além do desemprego. Do subemprego. Do pedir na rua, nos sinais, nas esquinas.

Me sinto privilegiada com emprego, com home office alguns dias por semana, por ter sido durante esse ano parte daquela parcela da população que podia ficar em casa testando receitas de pão, poses de yoga e aumentando a quantidade de livros que leu ou séries que maratonou.  Mas isso nunca me impediu de buscar me colocar na pele do outro, de ter empatia, de ajudar como pude quem tem menos privilégios que eu, e aqui não é lugar para elencar.

Mas é lugar para mostrar que o sentimento mais nobre do cristão é e sempre será a empatia, que precisamos lutar por esse sentimento que nos humaniza, senão para oferecer o pão para orar pela pessoa, oferecer um ombro amigo, mesmo que virtual. É o sentimento mais nobre de quem se diz agnóstico também, como um de meus escritores prediletos, Ernest Hemingway, apesar de ter sido um caçador inveterado (provavelmente está no inferno hoje, desculpem a quebra nas minhas filosofias).

Como diria meu pecador e querido escritor falecido, a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. “E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. É com essa frase de um poema de John Donne, poeta inglês do século 17, que Hemingway começa um de seus livros, cujo título o inspirou nesse trecho.

Morei por dois anos em Eirunepé, onde minha mãe nasceu. No interior, todo mundo se conhece e, quando os sinos dobram, é mesmo por todos, é uma parte da comunidade aquele ser que está ali no caixão. Um a menos. Tem cidade que tem código de quantas vezes o sino bate para anunciar se foi homem, mulher, criança. É triste, é solene, é respeitoso com a morte de uma parte da humanidade.

Foi lá que vi um cadáver pela primeira vez, eu tinha uns 9 anos, e a criança naquele caixão azul celeste, no meio da sala de sua casa, tinha uns 6,7. Era uma menina como eu. Foi com a visão daquele corpinho franzino, vestido com uma bata cor de rosa, que me fez começar a pensar na minha finitude, de meus irmãos, de meus pais. Tive esse choque filosófico muito cedo, foram muitos pensamentos imperfeitos e alguns pesadelos, mas talvez tenha ajudado a me tornar mais humana.

Eu poderia estar naquele caixão, como aquela menina, era tão mortal como ela. Sempre penso nela, onde ela poderia ter estudado, teria escolhido ser dona de casa, teria feito faculdade, teria filhos? Por quê ela e não eu? Sempre fui me consolando com pensamentos que as pessoas mais religiosas explicam sobre “há planos de Deus para você”. Sigo vivendo e me apegando a essa ideia do “tecer plano” ser para uns e para outros a morte, mesmo que realmente nada entenda do porquê. Mas aceito, não tenho outra opção a não ser viver da melhor forma possível, também para honrar aquela menina que não pôde.

Com a Covid, e a morte em massa de amigos, parentes, conhecidos e de milhares de inumeráveis desconhecidos (encare sua finitude no @inumeraveismemorial, vai te fazer bem, te faz descer do pedestal risível da imortalidade que a gente se coloca de vez em quando), não há como uma pessoa em sã consciência, sem problemas mentais, não se colocar no lugar do outro, do sofrimento do outro, da dor do outro. Durante essa eleição, houve candidatos que morreram desse vírus maldito, a mãe do prefeito eleito de Manaus, meu Deus, não teve a felicidade de ver nesse plano a vitória do filho. Quantas mães não perderam seus filhos, quantos filhos não perderam seus pais?

Esse meu sentimento de empatia, que sei que é de muitos, não encontra eco no presidente. E isso me incomoda fortemente, a frieza e o descaso desse ser. Não sou a primeira nem a última articulista a chamá-lo de genocida por suas palavras e ações. Tenho amigos que moram nos Estados Unidos e que vão terminar o ano com esperança, com um presidente nitidamente mais humano que este nosso. Tenho amigos na Espanha, na França, na Alemanha, que mesmo sofridos com tantas perdas pela Covid, também terminam o ano com esperança na vacina.

Porque a esperança deles vem de cima para baixo, de líderes com palavras e atos sempre de cuidado e amor por seus povos, na preocupação de fazer o lockdown e depois voltarem atrás, se desculpando, como seres humanos, por não saberem como aquelas pessoas dos restaurantes, do comércio, poderão fazer para sobreviver, convivendo com essa dualidade de salvar vidas das duas formas, com ou sem tudo fechado. Mas sendo humanos. Aqui, nosso presidente não, nunca mostrou solidariedade, amor, cuidado, sempre demonstrando seus graves problemas mentais detectados desde o Exército (ouçam o podcast #5 de Quebrando o Tabu, com a análise dessa mente sombria pelo psicanalista e professor da USP Christian Dunker). “Ele tem um caráter farsesco, seu personagem é assim, piadista e cruel, mas não tem uma personalidade alegre, e sim é triste, taciturno, amargo e soturno”, a frase que me marcou sobre os traços desse ser que temos o azar de ter na presidência.

Por isso, brasileiros que ou não votarem nessa coisa grosseira e sinistra ou votaram e já se arrependeram, entram o ano mais cansados do que qualquer outro ser nesse mundo, porque a gente não se sente compreendido ou abraçado pelo presidente e esse sentimento é absolutamente necessário num momento em que os abraços são mais que necessários, mesmo que virtuais. Eu lamento por todos nós, acuados, terminando esse ano tão sem esperança, nem num impeachment, já que Rodrigo Maia apoia o governo e barra todos os pedidos de impeachment sem ao menos publicizá-los. E a gente nem pode se manifestar nas ruas, em tempos de pandemia.

Mas, precisamos, é claro, nos apegar naquele lado egoísta da gratidão pelo nosso umbigo. É necessário para tentarmos buscar ao menos uma centelha da esperança: estamos vivos, há seres amados ao nosso redor também vivos, ou que sobreviveram a esse vírus mutante e traiçoeiro. E prefira sempre bloquear uma pessoa em rede social a trocar xingamentos e ódio com ela, faça isso por sua sanidade, pois o ódio parece um antídoto para a tristeza, mas o efeito rebote cai pesado se você se deixar levar. Porque precisamos resistir, mesmo (muito) cansados. Desejo de coração muita força, saúde, paz e empatia para todos nós em 2021. E que nos apoiemos uns aos outros, mesmo que virtualmente.

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(*)Jornalista e mestre em Ciências Políticas

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