A natureza como um campo de batalha

O título deste é artigo é uma referência à obra de mesmo nome de Razmig Keucheyan, publicada em 2014, mas ainda sem tradução para o português, que oferece uma reflexão acerca da retórica ambientalista do “pacto ambiental”, contido nos apelos pela preservação do meio ambiente por estarmos na mesma “nave” Terra e que os efeitos desse processo atingiriam a todos, indistintamente.

Mas, esse clamor por um “pacto” seria possível? Para responder a esta questão é necessário estar atento para o fato de que as mudanças climáticas já são contemporâneas e alguns países e seus governos têm feito escolhas de enfrentamento cada vez mais distantes de um utópico acordo humanitário para salvar o planeta.

O aumento da amplitude térmica e a maior ocorrência de secas e inundações são exemplos concretos de danos naturais que, aparentemente, atacariam a todos, mas nem todos estão vulneráveis aos seus efeitos, o que faz com que esses danos não sejam vivenciados de maneira igual, sendo muito mais agudos aos pequenos agricultores, às comunidades rurais e aos povos tradicionais.

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Isso não é um dado distante da nossa realidade, como alertaram Bruno Carvalho e Carlos Nobre no artigo Fire and Drought, publicado em outubro passado no The New York Times, as pesquisas indicam um aumento de 1.5º C na bacia
amazônica, com secas extremas cada vez mais frequentes e duradouras, como nos anos de 2005, 2010 e 2015-16, as piores num ciclo de cem anos.

Essa instabilidade não passa despercebida ao mercado de capitais, que intensificou suas observações sobre o
meio ambiente e seus acontecimentos catastróficos, passando a delinear grandes oportunidades de negócios, através da classificação dessas catástrofes como técnicas ou naturais, com indicadores de riscos para investidores, orientando,
principalmente, operações de securitização de grandes conglomerados empresariais.

Um exemplo é o Swiss Re Institute que utiliza o conhecimento de risco da resseguradora Swiss Re para produzir pesquisas e relatórios anuais, publicados há 52 anos na revista Sigma, referente à amplitude de danos humanos e materiais provocados por catástrofes técnicas, a exemplo da Primavera Árabe, ou naturais, como o Furacão Katrina, destinado ao que ela própria denomina de “mercado mundial de resseguros e catástrofes naturais”. Observe
que para esses grandes projetos econômicos privados a insegurança ambiental é reduzida, não havendo investimento sem que haja securitização de cada centavo.

De outro lado, as vítimas imediatas desse insustentável desequilíbrio, os médios e pequenos agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, que, além do duro golpe às suas atividades produtivas, não contam com um sistema robusto de seguros e garantia de preços, ainda têm de enfrentar a ausência de uma ação eficiente na regularização fundiária e no reconhecimento territorial, que os permita acessar políticas públicas fundamentais, que vão desde a prestação de serviços básicos de saúde, educação e previdência, até a implementação de programas de serviços ambientais, como crédito de carbono, concessão florestal, recursos hídricos, valorização cultural e do
conhecimento tradicional ecossistêmico e uso do solo.

Difícil falar em “pacto”, quando não há isonomia para o enfrentamento aos danos advindos das mudanças climáticas. Aqui, qualquer semelhança com o que testemunhamos com a Covid-19 não é mera coincidência.

Por isso, o debate que deve anteceder a ideia conciliatória transcende ao meramente ambiental e refere-se à implementação de políticas públicas que contenham reconhecimento cultural contra representações públicas estereotipadas, redistribuição material com regularização fundiária e apoio econômico dos poderes públicos, e representação com garantia da participação e do controle social, como pensada por Fraser (2009, 2021).

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(*)Daniel Pinheiro Viegas é advogado, procurador do Estado do Amazonas e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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