A poética do Encontro das Águas e o centenário do escritor Fernando Sabino

Encontro das Águas e o escritor Fernando Sabino (Arte: Mateus Moura/Cenarium)
Ademir Ramos – Especial para Revista Cenarium Amazônia*

MANAUS – Fernando Sabino não foi o primeiro, e nem tampouco o último, a se encantar com a poética do Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões, cartão-postal de Manaus.

O laureado escritor de Minas Gerais, contista e romancista afamado, faz 100 anos de nascimento em 2023. Por valor e mérito de suas obras, vem sendo celebrado por todo o Brasil com novas edições, conferências, debates e estudos acadêmicos.

Na sua extensa coletânea literária, o destaque maior é para “O Encontro das Águas – Crônicas irreverentes de uma cidade tropical”, publicada em 1977 pela Record, com apresentação do renomado Márcio Souza.

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“A voz de Fernando Sabino ganha essa importância inédita, numa área onde o ineditismo tem sido utilizado para encobrir conceitos de exploração e colonialismo“, afirma o autor de “Expressão Amazonense” (1978), Márcio Souza.

No enunciado da obra, o festejado escritor mineiro procurou, por meio de suas crônicas, captar o impacto de quem estava vendo Manaus pela primeira vez. “Pois senti o impacto e, mais ainda, acabei rendido ao seu mistério.”

“O Encontro das Águas” prenhe de um simbolismo prospectivo envolvente que faz o próprio autor a se perguntar: “Mas que diabo de cidade é essa que me envolve, que me prende, que me faz girar a esmo como um sumidouro de águas? Que força magnética me segura, me arrasta no seu curso como o de um rio, me faz deslizar no meio dessa gente, já sem saber da minha origem e do meu destino?”

Amazônia e, particularmente, o Amazonas eram uma grande interrogação no universo literário de Fernando Sabino.

O fato é que, pouco ou nada sabia dessa realidade. “Não me esqueço o interesse dos ingleses, em Londres, sempre a me encher de perguntas sutis sobre o Amazonas,” lembrando que em 1964, durante o governo João Goulart, Fernando Sabino foi Adido Cultural do Brasil em Londres.

Envolto desse “ineditismo” neocolonial, marcado pelo genocídio dos povos indígenas e pela devastação da Amazônia, sob a ordem de uma política integracionista da ditadura militar, Fernando Sabino desembarca em Manaus, em 1976, com mil e uma interrogações na tentativa de compreender os mistérios que povoam o imaginário de nossas culturas.

“Nessa região rarefeita demograficamente, como o Amazonas, a forma poética salta para o primeiro plano, já que é importante criar o mito do homem”, ensina-nos Márcio Souza (1978: p. 183). Tal poética faz-se notar pela demarcação cultural do tempo e pela representação do homem circundado pelos mistérios dos encantados dos rios e dos espíritos das florestas.

Aparentemente, nada tem de extraordinário, no entanto, o cronista seduzido pelo Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões, de súbito é arrebatado pela prospecção simbólica do evento, exclamando em alto e bom som: “Tudo aqui parece encerrar um sentido simbólico; os rios, as florestas, os animais e as plantas, os próprios homens.”

Fernando Sabino parece acordar de um sono profundo, trazendo a chave capaz de compreender os mistérios desse universo mítico: “Aqui a natureza nos dá a sensação vertiginosa de que um dia fomos deuses. Aqui a alma se expande até perder-se no vazio onde o espaço e o tempo se confundem, que tudo se harmoniza – tempo e espaço, civilização e natureza, homem e deuses – numa perfeita integração”.

O cronista exalta a integração do bioma Amazônico, contrariando o nacionalismo tacanho da ditadura militar que pregava a unificação do país amparado na teoria da conspiração – “integrar para não entregar”. Com isso, justificava a construção da Transamazônica como frente expansionista dos megaprojetos bancados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, favorecendo as empresas mineradoras, madeireiras, grileiros, latifundiários, agropecuárias e demais frentes de violação dos ecossistemas e do genocídio dos povos originários.

Sob a prática da barbárie, dos predadores neocoloniais, o governador do Estado do Amazonas à época, Eduardo Braga, foi um dos principais incentivadores da Construção do Porto das Lajes, no Portal do Encontro das Águas. Para ele, a construção do complexo portuário das Lajes tinha data e hora marcada para começar.

É o que consta no site de notícias da Superintendência Estadual de Navegação, Portos e Hidrovias (SNPH): “O início da obra do novo terminal portuário de Manaus está na contagem regressiva. A previsão da Lajes Logística S.A. – empresa oriunda da parceria (joint venture) entre a carioca Log – in Logística Intermodal S.A. e a manauense Juma – é que a partir do dia 1º de outubro deste ano, os operários já estejam com a ‘mão na massa’, literalmente, na construção. O terminal terá uma área de 144 mil metros quadrados, em um terreno de 600 mil metros quadrados localizado no bairro Colônia Antônio Aleixo, Zona Leste” (2/7/2008).

A notícia impactou os moradores da Colônia Antônio Aleixo, sobretudo suas lideranças do Centro Social e Educacional do Lago do Aleixo, do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, e mais ainda o Núcleo de Cultura Política da Universidade Federal do Amazonas, o então pró-reitor de Extensão da Universidade Estadual do Amazonas, a Arquidiocese de Manaus representada por religiosas e religiosos da Paróquia do Bairro.

Dessa união de braços e sonhos, criou-se em setembro de 2008 o Movimento S.O.S Encontro das Águas com o propósito de mobilizar e articular os atores em defesa da salvaguarda do Encontro das Águas como patrimônio cultural e ambiental do povo do Amazonas, contrário à construção do Porto das Lajes.

Com essa união de forças, o Movimento S.O.S, articulado com o Ministério Público Federal e Estadual, fez-se ouvir pelo então presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Luiz Fernando de Almeida, que depois de ampla consulta legal, pautou para a 65ª Reunião do órgão, no dia 04 de novembro de 2010, o Tombamento do Encontro das Águas, como consta em Ata.

“O processo em questão propõe o tombamento do local de confluência dos Rios Negro e Solimões, bem como parte de seu entorno, nos municípios de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea, no Estado do Amazonas. Esse local, doravante aqui referido como ‘Encontro das Águas’, reúne, por suas características naturais e culturais, atributos que o qualificam, por excelência como uma paisagem passível de reconhecimento como patrimônio cultural de alta relevância, tanto de acordo com os conceitos previamente, e de maneira breve, aqui alinhavados, como pela importância simbólica e concreta que tem para as sociedades manauara, amazonense e brasileira contemporâneas.”

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Depois de submeter a julgamento dos 22 conselheiros consultivo e, não havendo mais outras manifestações, o Presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, colocou em votação a proposta contida no Proc. nº 1.599-T-2010 (Proc. nº 01450.015766/2009-08) – acolhida por todos, ficando tombado, por unanimidade, o Encontro da Águas dos Rios Negro e Solimões e a sua área envoltória, no Estado do Amazonas, e aprovada a sua inscrição no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, com publicação no Diário Oficial da União no dia 11 de novembro de 2010.

Contrariado em seus interesses privados, o governador do Amazonas ajuizou Ação Ordinária com pedido de antecipação de tutela com vistas à anulação do processo administrativo de Tombamento do Encontro das Águas. O Movimento S.O.S., por considerar o Encontro das Águas como formador do Rio Amazonas, fez de tudo para transferir para a alçada do Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento da matéria.

Passaram-se 12 anos e até o presente, o STF não decidiu sobre a questão. Mas, o Tombamento está consumado e assim como o imortal Fernando Sabino, acreditamos também que: “Talvez amanhã a riqueza de um povo seja medida pelos seus esforços a favor da conservação da Natureza, do seu ambiente natural, ou seja, pela capacidade de conseguir preservar a sua própria alma,” é o nosso grito.

(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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