A vontade do povo

Na primeira metade da década de 1930, o povo americano enfrentou dois problemas aparentemente intratáveis. A primeira foi a Grande Depressão, a pior crise econômica da história do País. Desesperado por um líder, senão um salvador, o povo elegeu Franklin Roosevelt como presidente e deu a ele uma forte maioria democrata no Congresso.

Após a posse de Roosevelt, o Congresso começou a adotar as medidas do New Deal com entusiasmo; o ritmo da legislação era, simplesmente, de tirar o fôlego. Muitos, hoje, contestam a eficácia dessas medidas, mas, na época, o programa de Roosevelt oferecia algo de que as pessoas precisavam: esperança.

O segundo problema foi a Suprema Corte. Após impressionante caso, os juízes derrubavam a legislação do New Deal declarando violação expressa à Constituição. Para Rossevelt e os milhões que o apoiaram, o veto persistente da Suprema Corte foi encarado como um desrespeito insondável ao princípio democrático: que a vontade do povo deve governar.

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No inverno de 37, Roosevelt contra-atacou na Corte. Recém-saído de uma vitória esmagadora nas urnas, ele estava determinado que os juízes não mais atrapalhassem sua agenda popular. Propôs ao Congresso uma legislação que lhe daria poder para adicionar um nomeado ao Tribunal para cada juiz com mais de setenta anos que se recusasse a se aposentar (pelo sistema norte-americano os ministros da Suprema Corte são vitalícios e, somente substituídos após a morte ou aposentadoria voluntária).

Durante meses, a questão de saber se o Congresso deveria ou não aprovar o dramático plano de Roosevelt dominou o País. A forma como o Congresso votaria em seu plano diria muito sobre o futuro da Suprema Corte, mas diria muito mais sobre a vontade do povo americano: negociariam o triunfo do voto popular e aprovariam o plano do presidente de “empacotar” e subjugar o Tribunal ou, por outro lado, insistiriam na premissa de que mesmo os governos democraticamente eleitos devem operar dentro dos limites da Constituição e, portanto, rejeitar a proposta de lei.

Após inúmeros debates, ao que parece, o País chegou a um acordo, o Congresso rejeitou a proposta legislativa de Roosevelt, mas somente depois que a Corte sinalizou sua capitulação e começou a aprovar as medidas do New Deal, momento em que a opinião pública se voltou, frontalmente, contra o plano.

Um acordo tácito foi alcançado, o povo americano concederia aos juízes seu poder, desde que a interpretação da Constituição, feita pela Suprema Corte, não se afastasse muito do que a maioria do povo acreditava que deveria ser. Em grande parte, este acordo vigora até os dias de hoje.

Enquanto isso, em nossa Terrae Brasilis, tivemos uma situação bastante peculiar diante de nós. Dentre tantas, escolho para esta primeira reflexão do ano a que remete a traços da história, que acabo de narrar sobre a vontade do povo dos EUA.

Em 1964, com o regime institucional implantado no País, saía-se de uma atuação em que a Constituição era suprema para, agora, elevar-se a tal Ato Institucional (decretos elaborados pelo Poder Executivo sem a aprovação do Poder Legislativo), sendo o primeiro deles dirigido a vedar o controle jurisdicional dos atos revolucionários. A dizer, atos de Estado como cassações, exonerações e perdas de direitos políticos ficaram fora do alcance do Judiciário.

Não bastou, no segundo deles, mais alterações ao regime democrático, novas cláusulas de exclusão da apreciação judicial de atos de Estado e aumento de 11 (onze) para 16 (dezesseis) o número de ministros de nossa Suprema Corte. Intenção, clara, de criar maioria favorável ao novo regime, consolidado com a cassação de três ministros (Victor Nunes, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva) e a capitulação de outros, indignados com as constrições feitas pelo Executivo.

Tais constrições passavam pelo crivo da então chamada Segurança Nacional. Ia de guerrilhas, sequestros, torturas, censuras a obras e peças, até as novas regras dos contratos de aluguel, uma vez que, embutido neste conceito de segurança nacional, residia o novo conceito de desenvolvimento econômico. Se a revolução não estava legitimada pela vontade popular, haveria de se legitimar pela eficácia econômica; política econômica e segurança nacional, faces da mesma moeda.

O que ambas histórias têm em comum, dentre tantos nuances, penso que seja o desafio que temos, hoje, como Estado, governo e, principalmente, povo, entender e saber lidar com a vontade popular (will of the people).

Novo ano, nova legislatura, novos governos, novo presidente. A única coisa que não parece nova é a recalcitrância em aceitar que somos uma democracia em evolução, o que implica em dizer que de um lado temos que aprender e saber ouvir a vontade popular, sobretudo, a que ecoa da escolha das urnas, mesmo que com ela não estejamos alinhados, e de outro salvaguardar a independência dos Poderes constituídos.

Historicamente, a Suprema Corte norte-americana é chamada de “consciência da nação”. Aqui, precisamos ter a certeza de que nossa consciência será, igualmente, respeitada e que se dará ao respeito; neste 2023 de tantos desafios, que tenhamos a vontade popular respeitada, saibamos lidar com as diferentes opiniões, exijamos nossos direitos e a observância da Constituição. Que saibamos reclamar, cobrar, mas, acima de tudo, colaborar para a construção de um Brasil cada dia melhor.

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(*)Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB Nacional); Professor de Direito Constitucional e Internacional. Coordenador da International Religious Liberty Association (IRLA) para a Região Noroeste do Brasil; Mestre e Doutorando em Direito.

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