Alerta epidemiológico: BR-319 propaga novas doenças para humanos


Por: Lucas Ferrante**

02 de janeiro de 2025
Alerta epidemiológico: BR-319 propaga novas doenças para humanos
Vista aérea em trecho da BR-319 (Ana Jaguatirica/CENARIUM)

A reativação e o asfaltamento da rodovia BR-319, ligando Manaus a Porto Velho, têm despertado preocupação entre cientistas e ambientalistas devido ao risco ampliado de propagação de doenças infecciosas na Amazônia. Em janeiro deste ano, eu e o pesquisador Guilherme Becker, da Penn State University, publicamos um alerta na revista Nature, destacando que a rodovia BR-319 expõe o maior reservatório zoonótico do planeta. Saltos zoonóticos, quando doenças passam de animais para humanos, estão diretamente ligados à degradação ambiental e ao desmatamento, que aumentam o contato entre espécies. Dados epidemiológicos publicados no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities já apoiavam essa hipótese, demonstrando que o desmatamento causado pelo trecho central da rodovia BR-319 havia gerado um aumento de mais de 400% nos casos de malária na região atravessada pela estrada. Essa degradação ambiental e o desmatamento, juntamente com a expansão de atividades como a pecuária, aumentam os riscos de saltos zoonóticos. Esse fenômeno foi evidenciado no estudo publicado no periódico científico Regional Environmental Change, liderado por mim com a participação de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e que chamou a atenção para o risco de novas doenças emergindo da região Amazônica.

Em outubro, em uma nova publicação no periódico médico The Lancet, apontei que essa seria a rodovia que, em vez de nos levar a Manaus, poderia nos conduzir à próxima pandemia e ao surgimento de novas doenças. Preocupantemente, no mesmo mês, o desembargador Flávio Jardim tratou isso como apenas uma teoria, mantendo a licença prévia para a pavimentação da rodovia BR-319. É importante destacarmos que essa licença não cumpriu todos os requisitos do processo de licenciamento ambiental, como a participação das comunidades indígenas afetadas nas audiências públicas, tornando-a irregular, conforme apontado pelo Journal of Racial and Ethnic Health Disparities e destacado aqui na Cenarium desde 2023.

Uma semana depois da decisão do desembargador, um estudo publicado no renomado periódico Nature Medicine, comprovou que a rodovia BR-319 tem propagado novas doenças. O artigo da Nature Medicine, também de outubro de 2024, confirmou que a disseminação de uma nova linhagem do vírus Oropouche surgiu na região da Amazônia cortada pela rodovia BR-319. Este arbovírus, mantido em ciclos de transmissão entre animais silvestres e vetores, como mosquitos e flebotomíneos, saltou para populações humanas na região da BR-319, resultando em mais de 6.300 casos confirmados desde 2022.

Figura do estudo da Nature Medicine que demonstra o local de recombinação das diferentes linhagens e sua propagação. A linhagem se diversifica na área cortada pela rodovia BR-319
Análises genéticas apresentadas no estudo publicado na Nature Medicine confirmam, de forma enfática, o surgimento desta nova linhagem do vírus Oropouche entre 2019 e 2020 na região conhecida como Amacro (composta pelos estados do Amazonas, Rondônia e Acre), especificamente na área atravessada pela rodovia BR-319

Os autores ainda destacaram: “O enfraquecimento da governança ambiental no Brasil entre 2018 e 2022 certamente atuou como um estímulo para o avanço do desmatamento. O desmatamento acelerado na região da Amacro coincidiu ainda com sua designação como zona especial para desenvolvimento agrícola, a expansão das atividades do agronegócio dependentes da expansão de fronteiras por meio do corte raso de florestas e a melhoria da infraestrutura, como a rodovia BR-319, que conecta as capitais dos estados do Amazonas e Rondônia e atravessa diversas unidades de conservação e terras indígenas. Embora seja desafiador estabelecer causalidade direta entre eventos, as evidências circunstanciais descritas acima apontam para uma suposta ligação entre os surtos atuais de Oropouche e fatores ambientais extrínsecos que culminam em maior exposição da população humana à patógenos na Amazônia brasileira” – Trecho de tradução direta do estudo.

Esses dados corroboram as hipóteses publicadas na Nature e no The Lancet de que a maior mobilidade e degradação florestal geradas pela rodovia BR-319 propagam novas doenças. Entretanto, em Manaus, observamos o silêncio da mídia tradicional, assim como da vigilância em saúde. Isso não surpreende: durante a pandemia de Covid-19, a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) negou a ocorrência de uma segunda onda de Covid-19 em seu início. Os alertas epidemiológicos partiram do meu grupo de pesquisa, e o primeiro alerta de risco de uma segunda onda foi dado com seis meses de antecedência, também no periódico Nature Medicine, em um estudo que coordenei.

Em um estudo publicado no periódico Preventive Medicine Reports, demonstramos que o avanço da transmissão comunitária do coronavírus em Manaus gerou a variante Gamma, também conhecida como P.1, durante a segunda onda de Covid-19, a qual foi responsável por dois terços dos óbitos por Covid-19 no Brasil e em outros países. Um estudo recente que coordenei, publicado no Journal of Public Health Policy, mostrou que a rodovia BR-319 contribuiu para o aumento da transmissão comunitária do SARS-CoV-2 no Amazonas, inclusive facilitando a disseminação do vírus em comunidades indígenas. Os indígenas, conforme apontamos no periódico Science, são grupo de risco para a Covid-19 e apresentaram uma susceptibilidade três vezes maior ao óbito por Covid-19 em comparação aos não indígenas, conforme destacado pela Lancet.

Atualmente, a nova linhagem do vírus Oropouche, que, assim como a variante Gamma da Covid-19, surgiu no Amazonas, já se espalhou pelo Brasil devido à trafegabilidade da rodovia BR-319, sendo responsável por casos até no estado do Espírito Santo. Em novembro, o estado registrava cerca de 500 casos da doença; hoje, já contabiliza mais de 2.400 casos do vírus, associado a perdas fetais, microcefalia e problemas congênitos, além de óbitos. Esse cenário gerou um alerta do Centro de Controle de Doenças Americano (CDC), que advertiu sobre os riscos de viajar para as áreas afetadas pelo vírus. Os primeiros casos do estado do Espírito Santo foram registrados em abril deste ano, principalmente em áreas rurais.

No que diz respeito à rodovia BR-319, o estudo publicado no Journal of Public Health Policy, que envolveu pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), do Instituto Butantan (Butantan) e da Universidade Paulista (Unip), apontou que as taxas de transmissão por contato, como é o caso dos coronavírus, aumentaram mais de 2.000% entre 2020 e 2022 para o estado do Amazonas, mais de 1.500% para a cidade de Porto Velho, em Rondônia e Manaus, no Amazonas, e mais de 500% para Humaitá. O estudo também destaca que argumentar que a rodovia foi aberta na década de 1970 e nenhuma pandemia surgiu é uma falácia, já que a rodovia ficou intransitável entre 1988 e 2015. Apenas após a concessão da licença de repavimentação em 2015, o desmatamento aumentou, como demonstrado em um estudo publicado na Land Use Policy. O estudo do Journal of Public Health Policy também indicou que as taxas de transmissão comunitária têm aumentado agora devido à ampliação da mobilidade entre os municípios da região devido a rodovia BR-319, o que favorece os saltos zoonóticos em virtude do aumento da degradação florestal e do desmatamento.

Em um estudo publicado no ano passado, por mim e pelo Prêmio Nobel e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Philip Martin Fearnside, apontamos: “O desmatamento resultante da reconstrução da rodovia BR-319 provavelmente causará uma expansão para a Amazônia central de anomalias climáticas já registradas no ‘arco do desmatamento’, o que degradaria ainda mais a floresta e aumentaria o risco do surgimento de uma nova pandemia nesta área. Isso aumenta as preocupações em torno do extraordinário potencial de degradação gerado pela rodovia BR-319 e reforça a importância do Rio Madeira como principal rota para Manaus.”

O estudo ainda finaliza apontando: “Avisos como este dos saltos zoonóticos com risco de novas pandemias devido à degradação ambiental e ao desmatamento são frequentemente ignorados, como o caso dos avisos da pandemia de Covid-19 um ano antes de seu surgimento, com a identificação de coronavírus em morcegos na região de Wuhan, na China. Como a Amazônia é um dos maiores reservatórios de zoonoses do mundo, uma nova crise global de saúde pública surgindo na Amazônia seria potencialmente ainda mais significativa do que a que ocorreu na China. O aumento de doenças endêmicas devido à degradação ambiental na área da Rodovia BR-319 é ​​um bioindicador de risco zoonótico iminente. Esses indicadores devem ser considerados pelos órgãos ambientais que decidirão sobre o licenciamento do projeto de reconstrução da BR-319. O risco ambiental à saúde pública é um dos fatores que contribuem para a inviabilidade ambiental do empreendimento”.

Desde março deste ano, minha equipe tem monitorado as doenças na região da rodovia BR-319 por meio de análises de DNA ambiental de amostras de água e solo coletadas ao longo de toda a rodovia. Os resultados serão apresentados ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) em janeiro de 2025 e estão sendo acompanhados pelo Ministério Público Federal (MPF) como forma de garantir que o MMA considere esses dados.

Imagens da coleta de amostras de água em corpos d’água as margens da rodovia BR-319 para análises de DNA ambiental

É crucial revisarmos esta estrada, que não é apenas uma rota para Manaus, mas uma estrada para a próxima pandemia global ou uma sequência de pandemias. Manaus tem um histórico de ignorar os alertas dos pesquisadores, como os emitidos pelo nosso grupo de pesquisa sobre a segunda onda de Covid-19. Também alertamos sobre o risco de saltos zoonóticos, pois os casos de malária já aumentaram, assim como os casos da nova linhagem do vírus Oropouche, que surgiu na região da BR-319 devido ao aumento do desmatamento e trafegabilidade. Este vírus já se espalhou pelo Brasil. O mais preocupante é que as taxas de transmissão de patógenos de contato, como os coronavírus, têm aumentado nos municípios atravessados pela rodovia, que corta o maior reservatório de beta-coronavírus do planeta. Este alerta tem sido dado por diferentes grupos de pesquisadores independentes e já é uma realidade. A transmissão de patógenos da área da rodovia BR-319 para humanos já está acontecendo, e a necessidade de agir é iminente.

(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas, mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia). É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pesquisador colaborador do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam).
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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