Alvorada: um delírio popular

O folclore popular também é um elemento de produção de delírio, e a sua compreensão supõe um mergulho no desbordamento da razão. A Alvorada do Boi Garantido é uma imersão na cultura de rua, nas borbulhas da sensibilidade entranhada na alma do povo. Uma elegia aos sentimentos que eclodem dos arcanos da subjetividade, na estreita acepção de Nietzsche (2020), ao evocar o humano, demasiado humano. A Alvorada é a presença do boi vermelho nas ruas, chamando o povo para brincar de boi-bumbá. É um momento de o povo lembrar suas raízes, comendo poeira no chão. Um ato cultural que faz o povo não esquecer que o seu boi abrolhou das ruas, vivenciou enchentes e vazantes do rio na Baixa do São José.

Na Alvorada fiz uma cartografia dos pés, vivi um caso de comoção popular quase orgásmico, com o povo me levando, num embalo poético de vibrações avermelhadas no coração da floresta. Um êxtase vivido em meio ao desejo, à excitação, fruição. Os símbolos e as palavras deixam de ser meros transmissores para tornarem-se sentimentos estéticos, em meio à magia, choro, risos, amassos, beijos, trocas de olhares, sedução. A vida exige passagem, como pontifica Benjamin (2010), e o boi vermelho abriu alas fazendo borbulhar sussurros de êxtases arrebatadores.

Percorri ruas, fiz a via sentimental com os pés no chão, não acreditava no que os olhos viam, caíram borbulhas da íris, um choro diferente, uma entrega, um abandono de si, que não tinha nada a ver com religiosidade ou estado de contrição espiritual. Estive e continuamos a estar diante do retorno astucioso do amor rejeitado, das pulsões incontidas, da errância dos sentidos ou das paixões desenfreadas, do inconsciente aflorado, do politeísmo, do devir animal, como diz Deleuze e Guattari (2012). É preciso saber ser teimoso, teimosa, descolado, descolada, selvagem, andar na contramão da regulação. Não é possível mais fazer a domesticação das paixões, dos corpos, pois o excesso de regulação desativa a tensão vital pela qual uma determinada comunidade se sente responsável por si mesma e assegura a própria conservação de si, como anuiu Maffesoli (2005).

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Essas experiências de entrelace do povo com o boi, nas ruas da Ilha Tupinambarana, ecoam de memórias afetivas e ancestrais que fazem da Alvorada um palco de emoções. Aos poucos fui vendo a onda popular crescer e o povo entoando cantos com as mãos estendidas: meu boi de pano, sou feliz porque te amo. Uma cartografia dos sentimentos, de pertencimento, uma celebração, louvação. A alma lacrimejava e entoava o canto da pertença, do coração, da razão e emoção: sou pai Francisco, sou Catirina, Gazumbá, sou Garantido.

Essa erótica social, uma certa patologia social, são linhas de fuga que permitem ao indivíduo sair da seriedade da vida. Permitem ao brincante transcender-se a si mesmo, desterritorializando-se dos cânones retilíneos de moralidade, numa purificação dos sentidos. Extravasamentos e catarses da alma são fundamentais para o fluir da vida. O humano não deve ser pensado só com o cérebro, posto que ele também é corpo, pele, emoção. A vida só é bela se tivermos apetite por ela, diz Maffesoli (2005). É um apetite de cultura, de diversidade, transgressividade, que remete para o fim do projeto monoteísta da razão moderna. Estamos em passagem há algum tempo, não estamos mais num período hipermoderno , mas num tempo contemporâneo de antropocena, uma lógica de regresso ao humanismo, um retorno ao ventre, aos sentidos, ao sensível.

Este é, pois, um tempo de parada, um tempo de si próprio, um mergulhar para dentro da alma, das emoções. É tempo de viver o delírio, sempre nas barras da loucura e nas cercanias do divino. É um contemporâneo que pulsa força e vigor, aquilo que lembra a representação da criança eterna, do trágico, como crítica à razão. É também a vivência do misticismo e de múltiplas formas de panteísmo, ateísmo, paganismo. A Alvorada é a expressão popular de uma pertença e conexão de si com o boi, um entrelace de afeto entre o povo e o seu ente ancestral.

Iraildes Caldas Torres é doutora em Antropologia Social e professora titular na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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(*)Professora titular da Universidade Federal do Amazonas e doutora em Antropologia Social.

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