Após pressão de empresas, Governo Federal flexibiliza exploração de madeira de terras indígenas

Madeira ilegal apreendida no Pará. (Lalo de Almeida / Folhapress)
Da Revista Cenarium*

SÃO PAULO – O governo de Jair Bolsonaro (PL) publicou nesta sexta-feira (16) uma instrução normativa que flexibiliza a exploração de madeira em terra indígena (TI), inclusive com participação de grupos não indígenas. Por lei, os recursos naturais dessas áreas podem ser utilizados apenas pelos próprios indígenas.

O documento, assinado pelos presidentes da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Xavier, e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, é descrito como um “plano de manejo florestal sustentável”.

A criação de planos de manejo não é raridade e permite criar exceções à lei. O dispositivo, por exemplo, é usado para que indígenas e ribeirinhos possam pescar peixes em determinadas regiões do Amazonas, por exemplo.

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Documentos obtidos pela Folha, no entanto, indicam que o plano publicado pelo governo Bolsonaro pode atender a interesses de madeireiras, que vinham pressionando por isso, e que a norma tem sido gestada nos órgãos há algum tempo.

Madeira ilegal apreendida no Pará
Madeira ilegal apreendida no Pará – Lalo de Almeida – 16.jul.2020/Folhapress

Em 2021, a Funai foi consultada pela Sollos, fabricante de móveis de madeira, acerca da viabilidade da criação de um “projeto-piloto” de plano de manejo sustentável para a Terra Indígena Baú, no Pará.

O ofício, ao qual a Folha teve acesso, indica que “não há impedimento legal” para tal atividade, mas que ela carece de regulamentação, e afirma que “estão sendo realizadas articulações interinstitucionais entre Funai e Ibama para a construção de uma instrução normativa conjunta” para resolver a questão.

O documento é da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da fundação. Não é possível afirmar, no entanto, se a instrução à qual ele se refere é exatamente a que foi publicada nesta sexta, ainda que atenda à demanda da empresa.

A Sollos tem lojas em 15 países e, em seu site, diz que busca “integrar o melhor de nossa cultura às referências internacionais através do uso racional da madeira como matéria-prima, do controle dos processos e métodos de produção em concordância com todos os requisitos ecológicos e do investimento em equipamentos de última geração aliados a técnicas artesanais”.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a empresa não se posicionou.

Folha também teve acesso a ofícios trocados entre a Funai e o Ibama, inclusive por seus presidentes, no decorrer de 2022, que debatem a criação do plano para exploração de madeira.

Em janeiro de 2022, por exemplo, Marcelo Xavier escreve a Eduardo Bim para solicitar “que sejam realizadas as respectivas adequações à minuta” sobre o plano de manejo florestal em TIs.

Área de manejo de exploração de madeira nativa próximo à comunidade de Cachoeira do Aruã, distrito de Santarém (PA). (Pedro Ladeira / Folhapress)

Além disso, apesar de ter sido editada no Diário Oficial a duas semanas do fim do governo Bolsonaro, o título da instrução normativa diz que ela é de “31 de outubro de 2022” —ou seja, em tese está pronta desde o dia seguinte ao segundo turno da eleição, da qual o atual presidente saiu derrotado.

Um dos focos da equipe de transição do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido justamente o chamado revogaço.

Os grupos de trabalho da transição propõem que uma série de medidas editadas por Bolsonaro sejam revogadas assim que possível pela próxima gestão —boa parte delas na área do meio ambiente, mas também na segurança pública, por exemplo.

Segundo Aloizio Mercadante, foram entregues a Lula 23 páginas com possíveis normas a serem revogadas.

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o grupo de trabalho sobre questão indígena da transição também propuseram uma série de reversões relacionadas ao tema.

“As questões de normas e regulações estão sendo analisadas pelos grupos de trabalho de cada área, que irão encaminhar ao presidente e futuras autoridades de cada área as suas recomendações”, afirmou a assessoria de imprensa de Lula, que acrescentou ainda que, em que pese os relatórios temáticos já terem sido finalizados, novas informações ainda podem ser acrescidas.

Há, dentro do movimento indigenista, o debate sobre a regulamentação, ou não, da atividade madeireira em terras indígenas. Há comunidades, inclusive, que demandam a criação de regras para a extração.

Críticos da medida publicada pelo governo Bolsonaro, no entanto, afirmam que ela tem brechas para exploração de madeira por parte de não indígenas e também para realização de obras sem a previsão de estudos de impacto ambiental.

“A instrução editada no final de mandato de um governo derrotado, sem consulta aos povos indígenas e à revelia da Constituição e do Estatuto do Índio, porque permite que não indígenas se apropriem dos recursos florestais que são destinados ao usufruto exclusivo dos indígenas”, afirma a advogada Juliana de Paula, do ISA (Instituto Socioambiental).

A norma publicada nesta sexta permite a exploração de madeira pelos indígenas, mas também por sociedades de composição mista, e define estas como: “forma de associação ou cooperativa onde é admitida a participação de não indígenas, desde que essa participação seja inferior a cinquenta por cento (50%)”.

Além disso, segundo De Paula, a norma abre brecha para que sejam realizadas obras, como estradas e até edifícios, dentro de terras indígenas, sem estudo de impacto ambiental.

O artigo 15 do documento diz que podem ser realizadas, por meio de contratação, a “abertura de estradas, pátios e ramais” e a “construção de obras de arte especiais, tais como pontes, estradas, obras de drenagens e outras”, além de “edificações”.

“Para a realização do manejo florestal, a instrução prevê que poderão ser construídas estradas e edificações, mas não explica se essas atividades serão licenciadas, nem como. Isso poderá gerar mais impacto sobre os indígenas e aumento do desmatamento”, afirma ela.

Historicamente, os territórios indígenas concentram algumas das maiores áreas de floresta preservada do Brasil. Sob o governo Bolsonaro, contudo, o desmatamento nessas áreas disparou.

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