Aprovada em medicina, indígena se prepara para deixar aldeia no litoral de SP

Nauany na escola indígena onde completou o ensino fundamental 1. (Divulgação/ Unicef)

Com informações do UOL

SÃO PAULO – A jovem Nauany Pótu-Coereguá Gomes Pires, 18, vai iniciar em novembro uma aventura inédita para ela. Pela primeira vez, vai deixar a aldeia indígena Tekoá Pakowaty, em Peruíbe, litoral de São Paulo, onde nasceu e foi criada, para morar em Rio Grande, uma cidade distante no Rio Grande do Sul, onde irá cursar medicina em uma universidade federal.

Nauany, cujo nome significa, em tupi, “flor do amanhecer”, prestou vestibular em julho na FURG (Universidade Federal do Rio Grande) e conquistou a única vaga disponível para os cerca de 300 indígenas que fizeram o exame. Surpreendente, diante de todas as dificuldades que teve de enfrentar para estudar.

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Sua casa fica na zona rural de Peruíbe, em meio à mata atlântica, a cerca de 15 km do centro da cidade, numa área mais conhecida como Aldeia Bananal. Apesar de a região ter sido certificada somente em meados dos anos 1990, os indígenas de etnia tupi vivem lá desde antes da chegada dos portugueses. Há documentos que comprovam a tomada da área pela Ordem dos Jesuítas, em 1553, e sua respectiva devolução, há 300 anos.

Avô de Nauany, o cacique Awa Kiririndjú, registrado em cartório como João Gomes, foi um dos responsáveis pela reocupação das terras de seus ancestrais.

O trabalho dele, que também atuava como pajé e defensor das antigas práticas de cura, é considerado por ela como fonte de inspiração para a escolha da profissão. “Por causa do meu avô, desde pequena meu sonho é fazer medicina. No pouco tempo em que pude conviver com ele, antes de ele morrer, eu o vi ajudando muitas pessoas com garrafadas, banhos, chás e infusões. Medicina natural. A partir daí, passei a querer seguir esse caminho de curar as pessoas”.

Nauany Pótu-Coereguá Gomes Pires, estudante Nauany estudou desde muito cedo. Aos quatro anos, frequentava o maternal da escola indígena. Aos 11, graduou-se no ensino fundamental 1. As aulas eram ministradas pela mãe, Jacira, e pelos tios. Todos formados em pedagogia pela USP (Universidade de São Paulo).

Seu tio Awa Djipoka, irmão de Jacira, foi o primeiro professor indígena do estado de São Paulo. A função antes era exercida apenas por profissionais não indígenas. “Ele foi um pioneiro e revolucionou o ensino indígena. Na época, os professores não eram autorizados a incluir no currículo escolar os ensinamentos tradicionais, como a língua, a cultura, o artesanato. Depois que ele morreu, quando eu tinha dois anos, minha mãe foi a responsável por continuar esse trabalho. Comecei a frequentar a escola no colo da minha mãe. Ela me levava porque eu não tinha com quem ficar. Costumo dizer que eu praticamente nasci na escola”.

Aulas na cidade grande

Como não havia na área rural escolas indígenas da segunda fase do ensino fundamental, Nauany foi para a cidade, aos 11 anos. A mudança resultou em problemas, improvisos e muito sofrimento, com os quais a estudante teve de aprender a lidar e superar.

A primeira questão era a distância. A escola ficava a 2 km de caminhada em estrada de terra e mais duas horas de ônibus da aldeia. Quando chovia, a trilha virava lama. Dificultava a caminhada e impedia o acesso dos coletivos, que paravam antes de o asfalto da estrada, na região da aldeia, acabar. “Isso quando o ônibus não quebrava. Só existem duas linhas que servem a nossa área”, diz Nauany.

Quando isso acontecia, era preciso improvisar. As caronas com sitiantes locais e amigos da comunidade eram consideradas a melhor das expectativas. Do contrário, o tempo de ida ou de volta seria prolongado em mais algumas horas.

Depois das aulas, ela sabia que teria mais um problema para superar. Apesar de ter energia elétrica e outras comodidades da vida na cidade, não há bibliotecas próximas nem cabeamento de internet naquela região. “O sinal aqui é transmitido por antenas. Às vezes funciona, às vezes não. Isso atrapalha um pouco a gente. Assistir aulas à distância, então, é praticamente impossível”, afirma a estudante.

Nada seria empecilho maior para uma jovem indígena do que o preconceito.

Bullying: ‘Usar colar é feio’

Nauany gostava de se enfeitar para ir à escola. É parte de sua cultura usar brincos e colares coloridos e chamativos, muitas vezes feitos de penas, sementes e elementos estranhos à “normalidade” urbana. Não demorou a virar o centro das atenções. Da pior maneira. “Eles [os colegas] diziam: ‘Você é índia, mas está vestindo roupas?’. Ou então: ‘Se é índia, por que está usando celular?’. Algumas meninas ficavam apontando para os meus adereços e diziam: ‘Usar colar é feio'”, conta.

Seus professores se esforçavam para integrá-la e exigiam respeito dos colegas. Mas, na hora do recreio, as provocações se intensificavam. “Parei de usar os brincos e colares. Passei a sentir vergonha das minhas raízes, de ser quem eu sou. Chorei muito tentando me adaptar ao que esperavam de mim, por conta da intolerância com outras culturas como a minha”.

vida melhorou ao entrar na Etec (Escola Técnica) de Peruíbe, onde cursou administração. O tratamento mudou, a atmosfera era outra. Alunos e professores queriam saber mais sobre a cultura indígena. “A Etec valoriza muito a diversidade. Fiz várias apresentações em que incluía elementos da cultura e da história do meu povo. Voltei a usar os colares e os brincos. Voltei a ser eu mesma”, diz.

Foi quando entrou no projeto Crescer com Proteção, realizado pelo Unicef, em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Agenda Pública e o Instituto Camará Calunga, em oito municípios da Baixada Santista e do Vale do Ribeira.

Seu objetivo é fortalecer a prevenção e o enfrentamento das diversas formas de violência contra crianças e adolescentes por meio do incentivo à educação, à inclusão de meninas e meninos no mercado de trabalho e à participação dos adolescentes e jovens na construção de políticas públicas. “Foi um período muito intenso. Eu estava me formando na Etec, participando do projeto do Unicef e iniciando os meus estudos para prestar o vestibular de medicina. Cheguei a estudar 15 horas por dia. Mas valeu a pena cada minuto de esforço”, afirma. “Estou a um passo de realizar meu sonho”, continua.

Preparação para a jornada de mil quilômetros

Nauany concluiu a distância o primeiro semestre do curso, mas deverá sair em novembro de sua aldeia natal, em direção ao Sul. O ensino será presencial e bem longe. São mais de 1.000 km de distância entre a escola e a comunidade.

Uma vaquinha online vai ajudar nas despesas. Mas ela precisará encontrar colegas para dividir moradia ou conseguir um quarto em pensões ou repúblicas.

Apesar do frio na barriga, se diz confiante porque sabe que Nhanderú Nhandedjary (Deus) sabe de todas as coisas e dará tudo certo no final. “Esta será a minha oportunidade de aprender tudo o que possa aprender sobre a medicina convencional”, diz ela, de olho em validar a sabedoria tradicional indígena.

“Quero poder intercambiar a medicina natural e a ciência. Não vou deixar a sabedoria antiga desaparecer. Tenho certeza de que poderei ajudar ainda mais as pessoas.”

O pai de Nauany, Antonio, 44, irá pedir licença do trabalho por alguns dias para acompanhar a filha. “Ele vai me acompanhar e ajudar a me instalar lá. Quer ter certeza de que vou estar bem”, diz.

Pai e filha ainda não sabem se vão de carro, ônibus ou avião para o Rio Grande do Sul. Mas a estudante confessa que, ao pensar na última opção, fica apreensiva. Além de nunca ter viajado de avião, tem medo de altura.

Ela começa em outubro os preparativos para a viagem. Pretende comprar malas, roupas e itens necessários à vida longe de casa, como acessórios e produtos de higiene pessoal. E garante que não deixará para trás os colares e brincos, símbolo de sua ancestralidade. “Inclusive minha mãe já está fazendo para mim algumas biojoias especiais para eu levar. Eu espero encontrar um ambiente receptivo, que o local seja legal, que eu consiga aproveitar muito e me sinta acolhida e abraçada. Quero aproveitar tudo o que puder conhecer e aprender durante essa jornada”, finaliza a estudante.

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