Cenas de um diálogo de afetos

Parecia assim um encontro programado. Como se tivessem carinhosamente trocado mensagens por um desses modernos aplicativos de celular e combinado estação do ano, dia, horário, lugar e, inclusive, coreografia de gestos demonstrativos da mais profunda paixão. A princípio, por achar a cena trivial, não dei maior importância. Com a evolução dos fatos, porém, vi que nada tinha de brincadeira. Era coisa séria mesmo.

Ela chegou primeiro. Quer dizer, eu suponho que seja ela. Pousou com suavidade na extremidade direita da mureta da cobertura da casa em frente. Fez uns movimentos rápidos com a cabeça e sacudiu o corpo, como se tivesse sido tomada por um repentino estado de ansiedade. Suas penas se encresparam. Aí, com olhar atento de quem quer ter certeza de que a área está limpa, deu uma panorâmica de trezentos e sessenta graus, mapeando toda a área em redor. Depois, tufou o peito e firmou o olhar para a frente, em direção à rua, sem conseguir esconder traços de vaidade com leves pitadas de nervosismo. Embora eu tivesse acompanhado todo o desenrolar daquelas cenas iniciais, meu interesse continuava quase zero.

Foi então que, apressado e frenético, típico de quem está atrasado para um compromisso sério, ele pousou na outra extremidade da mureta da cobertura da casa em frente. Quer dizer, eu suponho que seja ele. Sacudiu o corpo e as penas se encresparam em resposta. Mas foi por pouco tempo. Logo voltou a manter a compostura, ajeitando com o auxílio do bico duas ou três penas rebeldes que continuavam alvoroçadas. Foi quando deixou escapar seu intenso nervosismo. Em seguida, num esforço para passar um ar de tranquilidade, baixou a cabeça de súbito e, logo em seguida, ergueu-a lentamente, cheio de si, em direção à pombinha de penas brancas com traços esverdeados no alto do pescoço. Ela, por sua vez, mantinha um esforço de indiferença e simulava olhar para os movimentos de um carro que atravessava a rua lá embaixo. Foi quando eu juntei as peças e me dei conta, agora já com a curiosidade à flor da pele, de que aquela encenação nada tinha de trivial. Deixei o computador de lado, abandonei de vez o que estava escrevendo e, já na ansiedade pelos próximos lances daquele encontro nada furtivo, grudei meu olhar na direção da janela.

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E aí, sim, começaram a acontecer os lances mais surpreendentes. Como numa coreografia bem ensaiada, ela finalmente deixou de lado a sua estratégica indiferença e moveu a cabeça com lentidão para seu lado direito. Foi quando, pela primeira vez, os dois olhares em extremidades opostas se encontraram por alguns segundos. Ambos balançaram a cabeça se cumprimentando e, como a confirmar uma senha previamente estabelecida, iniciaram a trajetória, um em direção ao outro, em passos lentos e cadenciados, até ficarem frente a frente, bem no centro da mureta da cobertura da casa em frente à janela do nosso apartamento.

A troca mais próxima de olhares também durou alguns poucos segundos, pois logo na sequência, deitando por terra o dito popular de que dois bicudos não se beijam, os dois bicos se encontraram e ficaram a se mordiscar, numa cena cinematográfica de causar inveja aos amantes mais apaixonados. Foi quando ele, quer dizer, eu suponho que seja ele, deu início a uma sequência de afagos no pescoço dela, quer dizer, eu suponho que seja ela, no que foi imediatamente correspondido. E os dois passaram ao mais puro e terno jogo mútuo de carícias. Para cada gesto meigo que um ou outro iniciava, havia sempre uma justa correspondência, como se estivessem a exercitar um explícito diálogo de afetos. E, por fim, depois de todo esse rito de preliminares, os dois se entregaram, não sei se aqui caberia dizer de corpo e alma, à mais desmedida e avassaladora das paixões, sem perceberem a minha imperdoável indiscrição.

Confesso que não sou chegado à ornitologia, mas li há algum tempo, em algum lugar de que já não me recordo, que uma das características dos pombos é serem fiéis em suas relações, tanto que o processo de incubação de seus ovos se dá na mais completa solidariedade do casal. De qualquer modo, nesse mundo dos humanos, permanentemente traumatizado por guerras, violência, ódio e desamor, tenho a mais absoluta convicção de que ainda temos muito a aprender com esses pássaros.  

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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