‘Cherry-picking’ constitucional

Na língua inglesa a expressão “cherry-picking” significa, em tradução literal, algo como “escolhendo as cerejas”, mas o seu verdadeiro significado vai além. Na verdade, trata-se de uma forma de supressão de evidências, também entendida como a falácia das evidências incompletas. Com um exemplo fica melhor de compreender. Suponhamos que eu precise afirmar que um argumento A é a verdade, contradizendo aquele que prefere o argumento B. Na minha pesquisa, seleciono todas as evidências que sustentem o argumento A, ainda que eu tenha encontrado muitas evidências que também sustentem o argumento B. Como tenho interesse em fazer valer o meu argumento e identificá-lo como verdade, ignoro as evidências que contrariam e fragilizam o meu argumento, ou seja, eu “escolho as cerejas” que convêm.

O debate social está cada vez mais constitucionalizado. Não há dúvidas de que a Constituição faz parte da atividade política e social do País e a própria população tem demonstrado interesse em pautas constitucionais. Sempre vejo isso como algo positivo, mas vejo também um aumento na responsabilidade dos juristas na explicação da matéria. Isso porque, dada a relação do Direito Constitucional com a política, fica fácil se perder em argumentos ideológicos, escolhendo aquilo que convém para ratificar determinada posição política.

Nesse aspecto, é preciso frisar que “convicções ideológicas não se baseiam em motivos, e sim, em interesses” 1*. Na advocacia, por estarmos comprometidos a defender um interesse na causa, é comum escolhermos as cerejas. Porém, a ideia precisa ser diferente, na academia, sobretudo, se pensarmos no Direito como ciência. Se a intenção é descobrir a verdade do Direito, por meio de um método científico, não podemos nos ater às falácias derivadas de evidências incompletas.

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Quando estamos defendendo interesses, é natural que cerejas sejam escolhidas para que o argumento se torne convincente. No entanto, um jurista, um professor ou um pesquisador do Direito Constitucional deve se preocupar em expor todas as evidências, todos os dados, para encontrar uma verdade que seja considerada válida e possível, já que o seu dever de informar precisa estar lastreado em uma conclusão derivada de uma ampla análise da questão. Somente dessa forma será possível fomentar um debate, verdadeiramente, democrático.

Se não for assim, partiremos sempre do lugar que queremos chegar, de modo que todos os argumentos são construídos a partir dos dados que são convenientes, e descarta-se àqueles que podem prejudicar a validade do nosso ponto de vista. Perderemos a maior vantagem que o método científico nos proporcionou: a racionalidade. Validaremos, por consequência, o rótulo ideológico, ultimamente, endereçado aos professores pesquisadores formados por cursos de pós-graduação stricto sensu.

Por óbvio, isso pode acontecer de modo acidental. Aqueles que não possuem experiência com o método científico podem acreditar que essa é apenas uma forma de realizar escolhas e não percebem que a racionalidade da escolha já foi comprometida pelo ponto de partida ideológico que não o permite conhecer os dados ou reconhecê-los como possíveis de serem avaliados.

Em um País democrático, essa prática fragiliza o pluralismo e dificulta o diálogo. Ademais, quando essa seleção de informação serve para ratificar a ideologia de grupos, a tendência é robustecer os pontos divergentes e se esquecer que existem pontos convergentes (sim, eles existem!). Assim, nos distanciamos da possibilidade de concretizar o ideal democrático, sustentado por escolhas conscientemente debatidas pela população.

Não custa lembrar que a Constituição Federal de 1988 já realizou algumas escolhas importantes para a vida social no País e concretizou uma verdadeira agenda para o nosso Estado Constitucional Democrático. Nela, encontramos princípios, objetivos, direitos e garantias fundamentais que estabelecem não apenas os limites daqueles que estão no poder, mas também indicam o propósito a ser perseguido por todos aqueles que ocupem um cargo ou função pública.

Desse modo, não podemos falar de competências dos Poderes da República, por exemplo, sem deixar de observar os fundamentos da República, dentre eles, o pluralismo político, a dignidade da pessoa humana e a cidadania. Quando a Constituição estabelece como fundamento da República os valores sociais do trabalho, o mesmo dispositivo também dispõe como fundamento a livre iniciativa 2*. Não há como, por exemplo, falar em liberdade de expressão, sem perceber que o anonimato é vedado no mesmo inciso e sem notar que a responsabilidade pelo exercício da liberdade de expressão vem logo no inciso seguinte 3*.

Isso nos faz perceber que a Constituição é um corpo consistente de normas que jamais deve ser interpretada em partes, colhendo-se os artigos que convêm. Se vamos escolher as cerejas que sejam aquelas – e todas aquelas – escolhidas pela nossa Constituição.

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[1] KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: Fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático. Tradução: Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009, p. 336.
2 Art. 1° da Constituição Federal de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: (…) IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.
3 Art. 5° da Constituição Federal de 1988: “(…) IV – É livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato; V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
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