Criação do Parque Nacional Tanaru encerra discussões sobre destino da terra do ‘Índio do Buraco’


Por: Ana Cláudia Leocádio

19 de setembro de 2025
Criação do Parque Nacional Tanaru encerra discussões sobre destino da terra do ‘Índio do Buraco’
Agentes da Funai acompanharam e registaram por 26 anos rotina do "Índio do Buraco" (Reprodução/Arquivo/Funai)

BRASÍLIA (DF) – Enquanto o País se voltava para o julgamento dos réus por tentativa de golpe de Estado no Brasil, no dia 11 de setembro, no mesmo dia o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin assinou uma importante decisão para os povos originários e autorizou a criação do Parque Nacional Tanaru, uma área de 8 mil hectares localizada no Estado de Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Nesse território viveu o último indígena desta etnia, identificado em 1996, que ficou conhecido como “Índio do Buraco”. Ele teve a morte constatada no dia 23 de agosto de 2022, pelos servidores e colaboradores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, desde então, havia muitas discussões sobre que destino dar ao território.

A decisão do ministro Fachin atende ao pedido da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 991), para que a área fosse protegida até a Funai deliberar sobre a melhor destinação para o local. A ADPF 991 foi protocolada no STF, dia 19 de junho de 2022, e tem por objeto garantir a proteção dos povos indígenas de recente contato, ainda sem mérito julgado.

Chamada a se manifestar, a União apresentou um Plano de Trabalho elaborado pela Casa Civil, os Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Funai, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O documento contém as justificativas sobre a opção por criar um Parque Nacional, nos moldes de Unidade de Conservação (UC), e define o papel de cada um na execução do trabalho, assim como o cronograma de implementação.

Área a ser destinada com Parque Nacional Tanaru (Reprodução/MPI)

Segundo o MPI, os órgãos federais têm até novembro para analisar e aprovar os estudos ambientais, socioeconômicos e culturais referentes à área delimitada do Parque Nacional. Até o final de dezembro deste ano, eles devem finalizar a proposta de criação do parque. Somente a partir dessa segunda etapa é que deverá entrar em execução o plano de implementação da unidade, o provimento de cargos e de servidores e a formação de conselho consultivo, o que deve ocorrer somente em 2027.

Ao homologar o Plano de Trabalho apresentado pela União, Fachin também prorrogou os efeitos da Portaria de Restrição de Uso 1.040/2015 da Funai, que venceria no próximo mês de outubro, e passa a valer durante a execução do cronograma de implementação da unidade de conservação, a fim de garantir a continuidade do regime de proteção do território.

Ainda conforme o MPI, o Departamento de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Depi) da Secretaria Nacional de Direitos Territoriais Indígenas (Sedat) participou, desde o princípio, das reuniões coordenadas pela Casa Civil para a elaboração do Plano de Trabalho, com apresentação de estudos arqueológicos feitos na região, que têm como objetivo promover reparação e preservação da memória e patrimônio histórico indígena.

“A floresta que hoje está conservada é resultado da cultura de um povo, que resistiu e manteve seu modo de vida ao longo de todos esses anos, ou seja, trata-se de um lugar de memória e de existência de um povo alvo de genocídio”, observou a diretora do DPI/Sedat, Beatriz Matos.

Segundo Fachin, o Plano de Trabalho “guarda consonância com o dever-garantia fundamental de proteção da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, insculpida no art. 231 da Constituição da República de 1988, bem como tutela o patrimônio ambiental, cultural e arqueológico concernente ao território outrora ocupado pelo povo Tanaru”. O ministro determinou que a União envie semestralmente e de modo minucioso o cumprimento de cada uma das etapas do Plano de Trabalho homologado.

Na segunda-feira, 15, a equipe jurídica da Apib, junto com a advogada macuxi da Coiab, Auzerina Duarte, reuniu-se com Edson Fachin, na sede do STF, em Brasília. Além de discutirem pautas sensíveis aos povos indígenas, eles ressaltaram a importância da atuação do ministro na ADPF 991.

Indígena preferiu viver sem contato

“Povos livres” é como o Conselho Indigenista Missionário conceitua os povos indígenas em isolamento voluntário, ato que enfatiza sua autonomia e autodeterminação para se manterem distantes do mundo exterior.

E foi nessa condição de indivíduo livre, que os registros de ocupação do indígena Tanaru foram documentados pela Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé da Funai (FPEG/Funai), desde 1996. Até sua morte, ele manteve-se voluntariamente sem contato com outros humanos. O nome do parque será em homenagem a ele, que recebeu esse apelido por causa do Rio Tanaru, que margeia o território onde ele foi identificado, que é entrecortado também pelos rios Corumbiara, Mequens e Taboca.

Indígena ficou conhecido como “Índio do Buraco” (Reprodução/Arquivo/Funai)

Segundo informações do Plano de Trabalho homologado por Fachin, assim que foi localizado, a Funai publicou logo uma portaria de restrição de uso. Na época, Tanaru ocupava áreas de florestas de propriedades consideradas privadas. Aquela região de Rondônia tem um histórico de ocupação complexo, que se intensificou a partir de 1910 com a chegada de colonos para exploração da borracha.

Segundo a União, esse cenário veio acompanhado de violência, epidemias e deslocamentos forçados, que vitimaram diversos povos indígenas da região. “São memórias de diferentes gerações, que mostram uma região altamente marcada por contatos forçados, deslocamentos, conflitos e alianças entre povos indígenas e não indígenas”, diz um trecho do documento entregue ao STF.

Foi nesse contexto que surgiu a hipótese de conexão étnica do povo Tanaru com o povo que se autodenomina Kampé, histórica e genericamente chamado de “Corumbiara”.

Foram pelo menos 26 anos de acompanhamento de Tanaru, também conhecido com “Índio do Buraco”, por conta das escavações que fazia na terra dentro da maloca que habitava, cuja função ainda é desconhecida pelos indigenistas e antropólogos. Ele jamais permitiu contato com os indigenistas, chegando a reagir às incursões dos colaboradores da Funai com flechadas, que chegaram a atingir pessoas.

Tanaru escavava buracos nos locais onde morava, segundo a Funai (Reprodução/Txai Surui)

Nesse período, foram estudados seu modo de vida, alimentação, habitação e encontrados diversos artefatos. A constatação da sua morte ocorreu no dia 23 de agosto de 2022, na Terra Indígena Tanaru, pela Funai, dando início às discussões sobre o destino do território, que neste ano chegou à sugestão da criação do Parque Nacional.

Após a análise forense do corpo do indígena, os indigenistas da FPEG/Funai entregaram ao Museu Nacional dos Povos Indígenas, em Brasília, todo o acervo material coletado durante décadas de observação. Seus restos mortais foram enterrados na área onde ele vivia, em 2022, após determinação da Justiça Federal.

Por que um Parque Nacional

De acordo com o Plano de Trabalho, a decisão de criar um Parque Nacional, “permitirá salvaguardar o território não apenas como memória de um genocídio, mas também como um organismo vivo que interage com a biodiversidade local, abrangendo tanto a proteção das características naturais do local quanto ao reconhecimento de sua importância cultural e histórica”.

Segundo a Lei 9985/2000, um parque nacional é uma área que tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e intepretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.

Área catalogada pela Funai como um dos locais onde viveu “Índio do Buraco” (Reprodução/Arquivo/Funai)

Adicionalmente, a criação do parque também contempla, entre seus fundamentos, a preservação do patrimônio arqueológico presente no território, reforçando a vocação da unidade como espaço de proteção integral do patrimônio natural e cultural. A identificação de um conjunto de sítios arqueológicos, como aldeias circulares, urnas funerárias, entre outros, compõem hoje o Complexo Arqueológico do Tanaru, área protegida também pelo Iphan, que o declarou como bens da União.

O objetivo é consolidar o Parque Nacional Tanaru como uma unidade de conservação exemplar, articulando conservação ambiental, preservação do patrimônio arqueológico e promoção da justiça histórica.

A área do parque a ser criado corresponde a oito mil campos de futebol (8 mil hectares), localizada entre os entre os municípios de Parecis, Pimenteiras do Oeste, Chupinguaia e Corumbiara.

A execução do plano será em quatro eixos:
  1. Eixo Indigenista: de responsabilidade do MPI e Funai, que devem garantir que o parque seja gerido de forma culturalmente sensível, preservando saberes, narrativas e práticas ligadas à história dos povos que habitavam o território;
  2. Eixo Ambiental e de Biodiversidade: liderado pelo MMA e ICMBio, que deverão integrar os dados ambientais e georreferenciados, além de monitorar ecossistemas, proteger espécies ameaçadas e recuperar áreas degradadas.
  3. Eixo Memória e Verdade: de competência do Ministério da Cidadania e Direitos Humanos, com apoio do MPI e Apib. Tem a perspectiva de transformar o território em memorial vivo e comunicar à sociedade, de forma crítica e sensível, as violações sofridas pelos povos originários que habitavam o território;
  4. Eixo de Preservação e Patrimônio Arqueológico: coordenado pelo Iphan em parceria com o ICMBio. Dará continuidade ao cadastramento e proteção dos sítios arqueológicos identificados e promover estudos adicionais para identificar a viabilidade de tombamento dos sítios arqueológicos cadastrados.
Leia mais: Funai flagra invasores na TI Tanaru, em Rondônia, logo após sepultamento do ‘Índio do Buraco’
Editado por Adrisa De Góes

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