Crônicas do Cotidiano: Não é bem assim…

A liberdade de pensamento e de expressão sempre foi objeto das discussões no mundo ocidental e das civilizações por ele engendradas, chegando até nós, que nele estamos geograficamente situados. E, para nós, essa discussão tem estreia no pensamento socrático e permeia a vida pública, dá fundamento aos modelos políticos da antiguidade clássica (Grécia e Roma) e atravessa todas as tentativas de governança que pleiteiam o nome de Democracia.

Calar a discussão sobre o tema foi sempre a garantia dos poderes autocráticos, teocráticos ou discricionários, o que torna incomensurável o número dos que “morreram pela boca”. Isto é, que ousaram expressar o seu pensamento e desagradaram os poderosos. O Iluminismo nos trouxe a discussão, a categorização, os fundamentos e os procedimentos de garantia ao incluir, junto ao direito a ter direito, o direito à vida e à liberdade de pensamento e de expressão, mas, para sua “efetivação”, foi preciso destruir as velhas estruturas políticas e fundar novas, com as garantias da contemporaneidade, num tempo que se estende desde as Revoluções Americana e Francesa, no final século XVIII, até nossos dias.

Ao sabor dos tempos, das forças governantes, da prevalência das ideologias, do desenvolvimento tecnológico, da consolidação do capitalismo como ordem econômica, dos avanços do esclarecimento e da solidez das instituições criadas para garantia desses direitos, a balança ora pende para um lado, ora para o outro e o conceito de liberdade de expressão ganha entendimentos diferentes. Na civilização ocidental e entre os que a adotaram como paradigma, prevalece a visão Iluminista, colada a conceitos do liberalismo político e econômico, da democracia, dos direitos fundamentais garantidos em lei e do respeito ao pensamento divergente, seja dos sujeitos ou das minorias, desde que estes e estas se manifestem dentro dos ditames legais, o que, para alguns, torna-se uma limitação ao pensamento divergente.

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Para os conservadores, divergir, portanto, é “desobediência civil”, “guerra civil”, insurgências que promovem rupturas e podem levar a uma nova ordem social. De cara, nos deparamos aí com a complexidade do tema e dos problemas nos quais nos inserimos no presente momento, isto porque, mais que nunca, o conceito Iluminista de liberdade de pensamento e de expressão está sendo distorcido ou usado por conservadores extremados para satisfazer às suas pautas utilitaristas de costumes e de visões ideológicas próprias, que podem nos levar ao obscurantismo, à supressão da conquista de direitos, sufocando o direito das minorias.

Sabemos que as coisas nem sempre foram assim tão direitinhas. Napoleão Bonaparte, da França, deflagra o terror sobre a Europa logo após a Revolução Francesa e não respeita os direitos fundamentais das liberdades do homem. Sua mão de ferro se fez sentir sobre a imprensa já estabelecida como instituição liberal.

Deposto e exilado, foge do exílio e retoma o poder. Nas aulas de jornalismo, aprendemos como essa imprensa liberal se ajusta às conveniências pelas sucessivas manchetes do Le Moniteur, jornal oficioso da época, narrando a epopeia do retorno de Napoleão ao Governo: “O Monstro fugiu do local do exílio”; “O Ogro desembarcou em Cabo Juan”; “O Tigre apareceu em Gap”; “É verdade que o Monstro adiantou-se até Grenoble”; “O Tirano agora está em Lyon”; “O Usurpador arriscou-se a chegar a umas 60 horas da capital”; “Bonaparte adiantou-se em marchas forçadas, mas é impossível que alcance Paris”; “Napoleão chegará amanhã aos muros de Paris”; “O Imperador Napoleão está em Fontainebleau”; “Ontem à tarde, Sua Majestade o Imperador entrou solenemente em Paris e chegou ao Palácio.

Nada pode superar a alegria universal”. Dois séculos desse modelo de Democracia Liberal em consonância com o “direito à informação”, deu aos jornalistas a sensação de que eram os paladinos da liberdade de informação. Tardiamente, descobrimos que na sociedade capitalista a informação e a notícia são, como as demais coisas, mercadorias e o direito de dizer pertence aos detentores do capital e dos meios de produção. Isso nos lembra muitas coisas, sejam da França de ontem ou do Brasil de hoje.

A nova ilusão da “comunicação social” está sendo enfrentada na Internet. Pensávamos que com ela chegaríamos, verdadeiramente, à liberdade de informação e à Democracia Direta. Deu no que deu! Novos Napoleões, com seus algoritmos e monetizações querem nos levar à barbárie!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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