DEVANEIOS DE UM LEITOR EM PENITÊNCIA

O que pode haver de mais conveniente e agradável para um leitor-devorador-de-livros do que trabalhar em uma livraria? Nunca foi o meu caso, mas me pego a imaginar quão fascinante teria sido. Já pensou o que seria respirar boa parte do dia na condição de uma ilha cercada de livros por todos os lados? E estar a par dos últimos lançamentos e ter por interlocução gente que gosta de livros? E chegar sempre antes do início do expediente ou permanecer além dele, para, a pretexto de limpar e arrumar as estantes, me perder entre capas, títulos, páginas e orelhas de livros? E aproveitar qualquer momento entre um cliente e outro para empreender pequenos e breves mergulhos aleatórios nas páginas dos autores de minha preferência? E as chances de não apenas sugar informações preciosas de leitores maduros e experientes, mas também me valer da prerrogativa dos conhecimentos e da função para seduzir e cativar novos leitores?

Delírios à parte, nutro a séria desconfiança de que minha permanência nesse emprego não teria vida muito longa. Já estou aqui a imaginar. O gerente da livraria me dirige um olhar atravessado, acompanhado de insistentes gestos interrogativos com as mãos. Enquanto isso, eu estou em plena viagem, numa dessas deliciosas conversas com um cliente, que já se transformou em amigo, sobre determinado livro que nos despertou entusiasmos mútuos.

E enquanto isso, outros clientes estão a ver navios, vagando de um lado para o outro sem a merecida atenção. O gerente da livraria sente minha falta. Corre entre as estantes e lá estou eu, no fundo de um dos corredores, diante da estante que abriga a seção de literatura, alheio ao mundo do trabalho e submerso nas linhas e entrelinhas do novo romance do Milton Hatoum. É, tudo está mesmo a sinalizar que minha vida nesse emprego não duraria sequer um verão.

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E onde fui arranjar matéria-prima para esses delírios? Conto a vocês agora e aproveito para me penitenciar.

O escritor argentino Alberto Manguel revela em seu livro “Uma história da leitura” que, ainda muito jovem, teve a sorte providencial de trabalhar em uma boa livraria na cidade de Buenos Aires. À época já um inveterado leitor, confessa que, aqui e ali, aproveitava-se do descuido da proprietária do estabelecimento para “emprestar” livros de seu interesse.

Outras vezes, quando flagrado num canto da livraria com os olhos submersos em algum livro recém-chegado, dona Lebach lhe chamava a atenção para voltar ao serviço, mas com o gesto adicional condescendente de que Manguel poderia levar o livro para ler em casa, o que lhe acendeu a desconfiança de que a patroa, no fundo, sabia dos esporádicos “empréstimos” que seu funcionário praticava.

Mas uma das grandes alegrias de Manguel leitor não foi apenas habitar o paraíso de uma livraria. Na manhã de um certo dia, ninguém menos que Jorge Luis Borges apareceu para resgatar uns livros que tinha encomendado a dona Lebach. Já quase cego, Borges contou com a ajuda de Manguel para localizar alguns livros e, num dado momento, veio o glorioso e inusitado convite.

Cheio de cuidados e desculpas antecipadas, Borges sondou se o jovem leitor dispunha de algum tempo no período da noite e, em seguida, disse-lhe que precisava de alguém que lesse para ele, uma vez que sua mãe, então com 88 anos, já estava muito cansada.

 A partir dali, durante dois anos Alberto Manguel foi os olhos e a voz mediadora entre o gênio de Jorge Luis Borges e os livros. E esse doce ofício de leitor era cotidianamente enriquecido não só pelas obras que Borges pedia para serem lidas, mas também pelas breves interrupções, a pedido do ouvinte, seguidas de comentários, análises, críticas, cotejos com outros livros e falas de trechos de livros de outros tempos adormecidos na memória, num amálgama de tão rica aprendizagem, que certamente foi fundamental na formação de Manguel, que assim resumiu aquela experiência de leitor:

“Jamais tive a sensação de apenas cumprir um dever durante minhas leituras para Borges; ao contrário, era como se fosse uma espécie de cativeiro feliz. Eu ficava fascinado não tanto pelos textos que me fazia descobrir (muitos dos quais acabaram por se tornar meus favoritos também), mas por seus comentários, nos quais havia uma erudição imensa, mas discreta, e que podiam ser muito engraçados, às vezes cruéis, quase sempre indispensáveis”.

Quanto a me penitenciar, faço-o aqui e agora, de forma contrita, pelo pecado em ter comigo há pelo menos duas décadas, ao alcance das mãos, “Uma história da leitura”, de Alberto Manguel, e só nos últimos dias finalmente mergulhar de forma apaixonada em suas páginas.

Ciente de que a paixão despertada pela leitura do livro no momento não é suficiente para me redimir do grave pecado, imperdoável em todos os sentidos, tento amenizar o arrependimento confessando, aqui e agora, que não desejo isso ao meu maior inimigo, pela certeza das perdas e danos que isso acarretaria para a sua condição de leitor.

Portanto, aos que ainda não leram, corram e mergulhem de cabeça em “Uma história da leitura”, para não terem que se penitenciar como eu.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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