Direitos tradicionais ameaçados pela Cargill em Abaetetuba, no Pará

Violações de direitos, desapropriação de terra, cercamento, autoritarismo, violência empresarial, ameaças, cerceamento do direito de ir e vir, controle sobre os recursos naturais, territorialização, especulação imobiliária, assédio moral e territorial.

Estes são alguns dos crimes que têm sido cometidos contra as comunidades ribeirinhas de Abaetetuba, pela Cargill, que quer instalar um porto para receber grãos do  Pará, Rondônia e Mato Grosso, que serão exportados para mercados externos por via fluvial.

A obra quer tomar cerca de 350 hectares do Projeto de Assentamento Agroextrativista Santo Afonso, na Ilha Xingú, Município de Abaetetuba, atingindo também dezenas de comunidades, centenas de pessoas, entre as quais, o Território Quilombo do Bom Remédio, onde cerca de 300 famílias habitam e trabalham na comunidade, às margens do Rio Açacu, no município de Abaetetuba, Pará, e onde o extrativismo, a pesca e a agricultura familiar constituem a principal fonte de sobrevivência da comunidade, há mais de dois séculos.

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BOM REMÉDIO

Único povo tradicional reconhecido pelos estudos apresentados pela Cargil para justificar a construção do Terminal de Uso Privado da empresa graneleira na Região, a comunidade construiu seu Protocolo de consulta prévia, livre, informada, de consentimento e veto, através de Assembleia Geral (17.06.2019).

Também conhecido como protocolo autônomo, conforme determinado pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, das quais o Brasil é signatário, o documento indica procedimentos e regras que consideram as realidades e especificidades da vida, do trabalho, da organização social e cultural da comunidade.

O Protocolo também assegura o direito destes povos de serem consultados quando afetados por obras de grandes projetos realizados em seus territórios, ou seja, a consulta à comunidade deveria ter sido realizada por empresa e governo, antes de qualquer estudo de viabilidade ou ato administrativo, ou Projeto de Lei, mas não foi isso que aconteceu.

Sem consultar comunidades, estas empresas estão a promover um ataque aos direitos destas comunidades, razão pela qual, por meio de organização social, elas têm buscado soluções junto aos Poderes Públicos, enquanto reexistem, como na luta de Davi contra Golias, considerando que a Cargill é a maior empresa de capital privado da América Latina.

E como se já não bastassem as fábricas de Vila do Conde (localizadas no município vizinho de Barcarena), que polui rios, contamina peixes e coloca em risco a segurança alimentar de milhares de pessoas dos dois municípios e até da capital Belém, para onde os produtos são transportados e vendidos, a construção da hidrovia Araguaia/Tocantins e do Terminal Portuário de uso Privado (TUP) vai impactar milhares de pessoas que dependem da pesca, do extrativismo e da agricultura no município de Abaetetuba, e demais municípios da Região Tocantina.

O aumento do tráfego por barcaças transportadoras de grãos de soja promoverá a extinção da pesca, sendo que as barcaças já depositam combustíveis fósseis e grãos de soja e de milho produzidos com agrotóxicos, nos rios, e os peixes contaminam a alimentação da população. Até produtos derivados de petróleo, como óleo, piche e coque, foram encontrados no intestino dos peixes capturados. 

OITIVA

Por causa disso, o Ministério Público do Estado do Pará realizou uma oitiva, no dia 25 de abril, no Território Quilombola Bom Remédio, onde mais uma vez ouviu as demandas da comunidade, que exige respeito ao seu direito à autodeterminação e ao protocolo de consulta, antes do processo de instalação do porto.

A reunião na comunidade também tratou do Projeto de Carbono reivindicado na área, assim como questões referentes ao inquérito civil (SIMP n° 003130-921/2021 e PA n° Nº00406-40/2022) instaurado pelo Ministério Público do Pará para acompanhar o processo das exigências legais e constitucionais referente ao licenciamento e ao impacto ambiental dos empreendimentos relacionados ao TUP, tendo sido a Cargill já notificada a apresentar estudos técnicos e independentes sobre o cumprimento da implantação do plano de mitigação e das compensações de danos ambientais, socioeconômicos e culturais das comunidades atingidas.

CRÉDITO DE CARBONO

Com relação ao Projeto de Crédito de Carbono, relatos indicam que a comunidade tem sido forçada a assinar o contrato com a Amazon Carbon, sem que os quilombolas estejam devidamente informados, apesar de já terem participado de oficinas sobre o tema.

A Amazon Carbon teria apresentado um texto contratual, em inglês, onde indicava o território quilombola como área promissora, negando-se a informar, para quem já está a ser pago, o referido crédito, quando a transparência seria, no mínimo, razoável para o melhor entendimento desta questão, razão pela qual ficou definida uma reunião, em 13 de maio, a qual serão convocadas a empresa citada, assim como a Associação de Remanescentes Quilombolas, cujo presidente estaria se desviando de suas funções com relação ao Projeto de Crédito de Carbono.

Sem definição de uma política específica, o mercado de crédito de carbono brasileiro – por não ser regulado – é voluntário, ou seja, as empresas agem livremente, na Amazônia, amparadas por um governo negacionista, que afastou o Brasil das metas globais do Acordo de Paris (2015), que rege medidas de redução de emissão de dióxido de carbono, a partir de 2020, e tem por objetivos fortalecer a resposta à ameaça da mudança do clima e reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos gerados por essa mudança.

A meta do Acordo de Paris é a redução de 50% de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, até 2030, o que evitará aumento da temperatura global em 1,5ºC. E a redução da emissão deste gás é convertida em crédito, ou seja, para cada 1 tonelada de dióxido de carbono, equivale a 1 crédito de carbono, portanto, o Crédito de Carbono é o esforço de “não emissão” destes gases na atmosfera. O mercado está em expansão e os piratas já atuam, entre as comunidades ribeirinhas, com promessas nem sempre confiáveis e jamais exequíveis.

OMISSÕES, AMEAÇAS E DENÚNCIAS

Em Recomendação conjunta n° 001/2022-MP/8PJC- MP/4PJA assinada no dia 26 de abril de 2022 por Herena Neves Maués Corrêa de Melo – Promotora de Justiça Agrária; Juliana Dias Pinho Nobre – Promotora de Justiça, Titular da 4ª Promotoria Cível de Abaetetuba; Ione Missae da Silva Nakamura – Promotora de Justiça Agrária, Titular da PJ da 1ª Região Agrária; Louise Rejane de Araújo Silva – Promotora de Justiça, em atuação conjunta na 4ª PJ Cível de Abaetetuba; o Ministério Público do Pará afirma que “a instalação do empreendimento acarreta violação a diversas legislações nacionais e internacionais”, e que o Estado do Pará é omisso “quanto ao estudo e avaliação de impacto e direito de livre escolha sobre territórios tradicionais por parte dos comunitários”.

O MP diz que o mapa contido no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), elaborado pela empresa Ambientare, corresponde a 540,00 hectares controlados pela multinacional, e não apenas a 388 hectares, inclusive com a instalação de cerca elétrica para impedir o acesso de moradores. O RIMA da empresa também não identifica as comunidades locais, como povo tradicional, apesar de haver estudos da ocupação da Ilha do Capim, que tem origem há 245 anos atrás.

Mas, de acordo com o artigo 3°, 1° do Decreto Lei n° 6040/2007, Povos e Comunidades Tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. O item 2 do mesmo artigo dispõe sobre territórios tradicionais como espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõe o artigo 231 da Constituição.

Os impactos ao plano de vida das comunidades afetadas são confirmados pelas informações da Fundação Palmares e Incra, de acordo com manifestação do Incra (ID 18309861, nos autos da Ação n° da DPPA) há sobreposição direta em Projeto de Assentamento da Reforma Agrária. Nestas áreas, os rios são como estradas que fornecem ligação à sede da cidade de Abaetetuba, e entre povoados, portanto, são essenciais para a comercialização dos produtos oriundos das comunidades tradicionais, o que viabiliza alimentação, cidadania e sustento de forma geral, sendo vias de uso comum.

A pesca artesanal é um dos instrumentos centrais dos modos de vida das comunidades ribeirinhas locais, sendo fundamental, na geração de renda, e meio de obter alimentação para a família, mas há cerca de 120 pesqueiros, nas áreas de mar, ao redor da Ilha do Capim, que são utilizados, diariamente, capturando em média 80 toneladas de pescado, e que foram ignorados pelos estudos da Cargill, que, de acordo com denúncias citadas na Recomendação Conjunta do MP, limitam o direito de passagem nos rios de comunitários, ribeirinhos, e/ou quilombolas, e impedem a locomoção ao território através do exercício de constrangimentos diversos, como a utilização de seguranças ou vigilâncias excessivas.

RECOMENDAÇÕES

Considerando estas graves denúncias, o MP recomenda à Cargill e seus prepostos, representantes legais, ainda que não formalizados juridicamente, mas que atuem em seu nome, que:

1. Não instale boias sem sinalização e regule, internamente, a quantidade de barcaças inseridas nos rios próximos às ilhas do Xingu e do Capim para preservar a trafegabilidade das embarcações que transportam passageiros dos rios;

2. Apresente justificativa no prazo de dez dias, acerca da divergência geoespacial do mapa contido no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) elaborado pela empresa Ambientare, o qual corresponde a 540,00 hectares controlados pela multinacional, divergente dos 388 hectares consignados nos documentos fundiários;

3. Não instale e/ou desfaça a instalação de cerca elétrica, para impedir o acesso de moradores, bem como outros dispositivos que possam limitar a liberdade de locomoção no território das comunidades, os quais incluem a navegação e a pesca, nos rios da região, às proximidades do empreendimento (Rio Capim), tais como muros e paredes e segurança armada nos rios;

4. Apresente justificativa sobre a ausência no EIA/RIMA sobre os estudos no impacto da navegação, haja vista que na área de impacto direto de instalação do TUP circulam dezenas, senão, centenas de pequenas embarcações de madeira utilizadas pelos pescadores artesanais como único meio de transporte.

O MP também recomenda ao Estado do Pará e à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade a suspensão/manutenção da suspensão do licenciamento ambiental da CARGILL até que o Estado do Pará tome as medidas de consulta às comunidades impactadas, considerando a decisão destas comunidades e respectivas avalições dessas famílias na fase do licenciamento do terminal portuário de Abaetetuba, e que esclareça, no prazo de dez dias, a eventual justificativa para a inobservância do Plano de Utilização pactuado entre os assentados do PAE Santo Afonso e o Incra, com a colaboração da Embrapa, validado pela Portaria n° 75, de 22 de agosto de 2007, publicado no DOU n° 189, seção 1, p.98, de 1° de outubro de 2007, que fica expressamente vedada a instalação de empreendimentos industriais, conforme está descrito no item 43.

O não atendimento da Recomendação dá ciência e constitui, em mora, o(s) destinatário(s), o que poderá ensejar a responsabilização dos destinatários e dirigentes recomendados por sua conduta comissiva ou omissiva, sujeitando-os às consequentes medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.

DOCUMENTÁRIO

O conflito gerado pela possibilidade de construção de um porto graneleiro da empresa norte americana Cargill, em território do Programa de Assentamento Agroextrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Município de Abaetetuba, também é o mote do documentário #ForaCargill, de Francisco Weyl.

O documentário parte do ponto de vista de pescadoras e pescadores, extrativistas, ribeirinhos, trabalhadoras e trabalhadores rurais, para narrar os conflitos e perigos aos quais estão submetidas as comunidades locais, na Amazônia paraense, sendo, portanto, um combate. Demonstra a incidência tanto midiática quanto ideológica, contra a grilagem, inimigo que se molda de acordo com o interesse e se fortalece através dos diversos projetos de instalação de empreendimentos para a Amazônia, com a narrativa do progresso, e opera de forma subliminar estratégias jurídicas e institucionais burocratizantes, que dificultam e/ou excluem o acesso aos direitos da e pela comunidade.

Produzido pela Arte Usina Caeté, com apoio do Fundo Casa, FASE Amazônia, WFK – Instituto de Direitos Humanos, Arte Usina Caeté, Caritas (Alemanha/Regional Norte 2/Das Ilhas), Conselho das Associações de Ribeirinhas e Ribeirinhos dos Programas de Assentamento Agroextrativistas de Abaetetuba, Conselho Nacional dos Seringueiros, Comissão Pastoral da Terra – Guajarina e Festival Internacional de Cinema do Caeté, o documentário pretende sensibilizar o público, contrapor o projeto privatista a um mundo coletivo, ancestral, de conhecimentos e saberes próprios, ameaçado de desaparecer na comunidade do Programa de Assentamento Agroextrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Abaetetuba, uma área de 2.705,6259 hectares, onde vivem cerca de 188 famílias.

Com 34 minutos, o documentário é rico de imagens e depoimentos capturados pelo diretor Marcelo Rodrigues, um dos quatro integrantes da pequena e valente equipe. Compõe também a equipe o músico Cláudio Figueiredo, responsável pela criação da trilha sonora; Luciano Mourão, dedicado operador de áudio, além de Weyl, responsável pelo argumento, roteiro, produção e realização.

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(*)O autodenominado Carpinteiro de Poesia, doutor em Artes, Francisco Weyl, há 20 anos desenvolve formações audiovisuais que reforçam a esperança de crianças e jovens, e mulheres em condições de vulnerabilidade, de comunidades periféricas excluídas, populações urbanas e rurais, ribeirinhas, tradicionais e quilombolas da amazônia paraense.

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