É possível separar a criatura do seu criador?

Gosto de folhear livros já lidos em busca das marcas ali deixadas durante a minha leitura. Costumo me guiar pela parte superior direita da página levemente dobrada e pelos destaques com essas formidáveis canetinhas que servem de marcador, velho e consolidado hábito meu de leitor. Nessas deliciosas empreitadas, não raro encontro passagens que me remetem a proveitosas reflexões sobre fatos passados ou recém acontecidos.

Lá estou nesses, diante de um destaque em que, numa entrevista, Clarice Lispector quer saber de Jorge Amado qual dos personagens dos seus tantos romances mais se parece com ele. E Jorge, sem pestanejar, responde que todos, porque todos os personagens, segundo o escritor baiano, têm um pouco do autor. E, Clarice, concorda plenamente com Jorge.

Foi uma espécie de disparador de reflexões, para eu me lembrar da velha discussão se se deve ou não separar o autor de sua obra. Na verdade, a questão me veio à tona, dessa vez, por conta da recente polêmica envolvendo o escritor Mario Vargas Llosa, que, referindo-se à disputa entre Lula, um notório democrata, e Bolsonaro, um assumido fascista, declarou que, se pudesse, votaria no segundo.

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Como pode? Muitos, como eu, que já viajaram na emoção de tantas páginas dos livros escritos pelo Nobel de Literatura se perguntaram. Como pode um escritor que vive de literatura abraçar a causa de alguém que odeia toda e qualquer forma de arte? Como pode um criador de mundos literários tão fascinantes alinhar-se a uma figura torpe e sombria, que não esconde seu pendor para o racismo, para a homofobia, para a misoginia e, muito menos, seu desprezo e indiferença pelo semelhante? Como pode um dos mais importantes escritores da América Latina perfilar-se ao lado de uma figura que defende armar a população, que se alia ao que há de mais nefasto nas forças armadas, que defende a tortura, a mais abominável das ações humanas, e que ameaça, diuturnamente, as instituições democráticas? Como pode, muitos se perguntaram?

Como agir, então, diante daquele princípio, estabelecido no mundo literário, de que se deve separar o autor de sua obra? Neste caso, faz-se necessário deixar claro, com todas as letras, que a princípio é impossível separar a criatura de seu criador, uma vez que, da mesma forma, é impossível separar o sujeito de sua formação social e ideológica e, portanto, o sujeito de seu discurso. Nada está mais indissociavelmente impregnado na vida do ser humano do que a linguagem. Ela é a mais perfeita impressão digital daquilo que o sujeito é, pensa e age, ainda que ele não faça ideia disso.

Neste sentido, por mais que um escritor crie mundos paralelos e povoe esses mundos com personagens simples e complexos, vivendo situações alegres, comoventes ou trágicas; por mais esforços que o escritor faça para se distanciar do objeto de sua criação literária, lá estarão, grudadas nos seus escritos, as sutilezas das marcas indeléveis de sua personalidade. Não há como fugir dessa determinação.

Bem a propósito, quem já leu Vargas Llosa, e agora ficou chocado com sua mais recente e estapafúrdia intervenção política, poderá reler algumas de suas obras e, com olhar apurado, certamente perceberá que, enfronhada no realismo mágico de suas criações, sempre esteve lá a visão de mundo conservadora, reacionária e com fortes temperos fascistas do escritor, manifestada no dia a dia de sua vida pública.

Quais, então, as possíveis ações do leitor diante de tal evidência?

De um lado, penso que o leitor poderá agir com racionalidade. Nesse caso, aí sim, praticando o extraordinário esforço do princípio literário de separar o criador de sua criatura, sem que para isso precise desconhecer, disfarçar, ou mesmo apagar as preferências ideológicas do escritor, ou mesmo as particularidades de sua vida privada. Eu, por exemplo, confesso que jamais teria voltado a ler alguns livros do próprio Vargas Llosa e de José Saramago, não fosse a genialidade dessas obras. Isso é compreensível.

De outro lado, penso que o leitor poderá seguir o caminho da extrema decepção. E por que isso? Ora, sempre que se mergulha com paixão nas páginas de um livro e por ele se cria encantamento, é inevitável que esse encantamento se estenda e se traduza em silenciosa admiração por quem o escreveu. Muitas vezes, após devorado o livro, acontece de o leitor se deparar com situações desabonadoras sobre a vida e o comportamento político do escritor que o constrangem e o decepcionam. Neste caso, é natural que o leitor se sinta, de certa forma, traído pela expectativa que ele mesmo criou do escritor e passe a querer distância de suas obras. Ou seja, quando assim ocorre, é sinal de que o leitor, pelas mais diversas razões, não conseguiu separar o criador de sua criatura. Isso também é compreensível.

De uma forma ou de outra, a decisão final caberá sempre ao leitor, ele, sim, a personagem mais soberana diante das páginas de um livro.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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