EM BUSCA DO ANJO BÊBADO

Não sabia exatamente onde, mas me bateu a certeza de que ele estava em algum lugar do apartamento. Quem sabe matreira e discretamente à espreita, acompanhando meus passos e movimentos, para conferir se eu continuava a concordar com o princípio defendido por ele segundo o qual “a decadência de todo ser vivo é a rotina”.

Sim, porque uma coisa é certa: apesar da epifania de desapego que me acometeu cinco anos atrás, quando eu descobri que uma parte da felicidade está em partilhar o que levamos anos acumulando na vida, eu jamais me desfaria daquela relíquia, sobretudo pelo que passou a representar em minha vida desde nosso primeiro encontro. Aliás, a própria epifania de que falei há pouco foi uma estupenda quebra de rotina, daí eu achar que ela, a epifania, foi um efeito retardado das conversas inquietantes que tive com o Anjo Bêbado. Por isso a minha certeza de que o danado estava, sim, em algum lugar incerto e não sabido, mas não ignorado.

Disposto mesmo a encontrar o Anjo Bêbado, comecei a mapear livro por livro na prateleira onde repousam os cronistas que me acompanham desde sempre. Lá estavam mostrando a cara Fernando Sabino, Rubem Braga, Raquel de Queiroz, Sérgio Porto. E nada. Tenho certeza, dizia a mim mesmo, que eu não abandonaria o Anjo Bêbado no meio do caminho, ainda que no meio do caminho tivesse uma pedra. E, por falar em pedra no meio do caminho, lá estava o cronista Carlos Drummond de Andrade ladeado à direita e à esquerda por Clarice Lispector, Cecília Meireles, Luis Fernando Veríssimo e José Carlos Oliveira.

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Por fim, quando minhas esperanças começavam a desvanecer, eis que dou de cara com Vinícius de Moraes em sua fase de cronista – ‘Para uma menina com uma flor’, uma edição de 1977 da Editora José Olympio. Pois acreditem, se quiserem, por trás do livro do poetinha, vislumbrei na parte superior esquerda de um fundo branco a figura de um passarinho e logo meu coração saltitou de alegria. Editora Sabiá! Baixei um pouco a vista e lá estava como que a zombar de mim o Anjo Bêbado com suas asas vermelhas em traços simples e magistrais saídos das mãos talentosas do Ziraldo. Mais abaixo, Paulo Mendes Campos. Foi uma glória!

Lembro-me como se fosse hoje. Ainda habituado a fazer a vida respirar no compasso das tradições conservadoras das primeiras leituras depois dos gibis, em que os poetas românticos do século XIX eram meu porto seguro de encantamento, incomodou-me a princípio o tom daquela pergunta irreverente: Quem poderá salvar a poesia da letra morta do academicismo? Eu não sabia muito bem o que era esse negócio de academicismo, mas a resposta do Anjo Bêbado logo jogou alguma luz sobre minha compreensão:

“Um vagabundo. Um poeta que não seja sério. Um boêmio, um lírico, um desrespeitador da ordem, um criador de ouvido sincronizado à invenção popular e indiferente às lições dos mestres”.

Parei a leitura, fechei o livro, marcando a página com o meu dedo indicador, e olhei para o infinito, como se tivesse levado uma bordoada. Fiquei, então, a remoer aquela audaciosa transgressão que tirava, inclusive, o sossego dos textos religiosos que, até então, eu praticava nas tardes de sábado com outros jovens no salão paroquial da igreja do bairro. Não demorou muito aquele meu estado de perplexidade e voltei ao parágrafo onde havia interrompido a leitura, para levar outra bordoada do Anjo bêbado:

“Francisco de Assis é a pura boemia da religião, a pregação do convívio universal, a purificação da pobreza, um convite aos vagabundos”.

Alguns segundos de olhos fechados, mas já com a mente escancarada para as infindáveis possibilidades do pequeno mundo que me cercava, foram suficientes para o Anjo bêbado fazer morada permanente em minha vida. Tinha eu meus dezessete anos, e até hoje, cinquenta e quatro anos depois, continua colada à minha memória, a desafiar o tempo, a frase com que Paulo Mendes Campos termina a crônica que dá título ao livro:

“Mesmo abstêmio, o poeta costuma ser um anjo bêbado”.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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