Em Duque de Caxias (RJ), desfile campeão sobre Exu vira divisor de águas no combate à intolerância

Com informações da Folhapress

RIO DE JANEIRO – O Pai de Santo Celinho de Omolu, 57, notava que as pessoas falavam o nome de Exu com temor na voz, como se o orixá mensageiro fosse um tabu ou uma ameaça. Esse cenário, diz ele, começou a mudar na madrugada do último domingo, 24, quando a Acadêmicos do Grande Rio entrou na Marquês de Sapucaí.

Durante o desfile, a agremiação exaltou o nome da divindade e conquistou o primeiro título de sua história. Segundo Pai Celinho, o medo começou a dar lugar ao respeito.

“Os leigos se sentiam mais confortáveis para falar de Exu. Antes do desfile, eles tinham receio, como se questionassem: ‘Será que eu estou reverenciando o diabo?'”, afirma ele, que considera o desfile um divisor de águas. “Agora, na TV, no Sambódromo e na comunidade, as pessoas falam dele com a boca cheia de orgulho”.

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O Pai de Santo mora em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense onde a Grande Rio nasceu em 1988. Para a liderança religiosa, o enredo foi um presente à cidade e às religiões de matrizes africanas.
“O desfile não poderia ter tido um resultado diferente. Exu dominou aquele momento com toda sua magia, amor e encantamento. O desfile foi de arrepiar”, diz ele, acrescentando que a sociedade precisava desse esclarecimento sobre a divindade.

Ela, frequentemente, é associada à figura do diabo, do cristianismo, associação que muitos usam para depreciar as religiões de matrizes africanas e as pessoas que cultuam o orixá.

“Exu foi demonizado e incompreendido. O desfile desmistificou essa visão que muitas pessoas têm sobre ele”, diz o religioso. “Exu, na verdade, é o mensageiro, o portador das informações do plano astral”.

Desconstruir preconceitos foi justamente um dos objetivos da Grande Rio. “O enredo e a vitória da escola carregam muitas camadas de importância. A primeira é desconstruir a ideia de que Exu é o diabo cristão”, diz o historiador e antropólogo Vinícius Natal, 35, que trabalhou na pesquisa do enredo.

O pesquisador diz, porém, que o enredo sofreu resistência de setores de fora da escola. “Alguns grupos conservadores se colocam contra, porque não entendem o enredo. Eles colocam Exu na velha associação com o diabo. Mas essas visões só demonstram a importância do enredo e de falar de Exu em todos os espaços”.

Se fora da Grande Rio houve resistência, dentro da agremiação a homenagem foi muito bem recebida. Vinícius explica que o enredo foi uma demanda da própria escola e ganhou força após o Carnaval de 2020.

À época, a tricolor foi vice-campeã com enredo sobre Joãozinho da Gomeia, o mais célebre pai de santo de Caxias. Já na apuração, a equipe de criação da escola, capitaneada pelos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, bateram o martelo e decidiram celebrar Exu no Carnaval seguinte.

“A gente começou, logo depois, o projeto de pesquisa, que se deu não só por meio de livros, mas também por entrevistas a componentes da escola, das comunidades de axé e do movimento negro”, explica Vinícius.

“Trazer Exu no desfile é dar uma resposta à intolerância e dizer que é preciso respeitar todas as religiões. A vitória coroa um debate sobre intolerância que a escola está pautando na cidade, no Estado e no Brasil”.

Mãe Conceição d’Lissá, 61, conhece de perto a violência motivada pelo preconceito religioso em Caxias. Ela diz ter sofrido cinco ataques; em um deles, foi alvo de tiros quando estava em casa.

O último episódio aconteceu em 2014, quando criminosos atearam fogo no barração onde está localizado seu terreiro. Em razão dos estragos, ela foi obrigada a ficar com o espaço fechado durante um ano.

“É como se a gente deixasse de ser cidadão, de ser uma pessoa com direitos. É uma impunidade que faz com que você se sinta muito impotente”, diz a religiosa, que teve estresse pós-traumático por causa dos ataques.

O município em que a Grande Rio nasceu de fato coleciona casos de intolerância. Em 2021, a CPI da Intolerância Religiosa, feita na Assembleia Legislativa do Estado, recebeu 37 casos vindos da Baixada, sendo que 19 deles (51%) ocorreram em Duque de Caxias.

Ainda segundo dados obtidos pela CPI, a cidade tem cerca de 300 terreiros, a maior concentração dentre os 13 municípios da região.

Já a Prefeitura de Caxias diz que recebeu, no último ano, 30 denúncias sobre intolerância religiosa. Em nota, o poder municipal afirma que combate todo tipo de preconceito e que oferece assistência social, jurídica e psicológica a quem sofre atos de violência religiosa. Além disso, diz levar às escolas palestras com reflexões e esclarecimentos sobre racismo, homofobia e intolerância religiosa.

Apesar do preconceito, Mãe Conceição diz que o candomblé é a sua vida e que não segurou a emoção quando viu Exu homenageado no Sambódromo.

Exu na avenida

“O Carnaval e o samba foram o nosso grito de luta por liberdade e por direitos. Foi um grito de resistência e reexistência. Exu foi para a avenida e todo mundo teve que vê-lo do jeito que ele é, não do jeito que querem que ele seja”, afirma ela. “Que seja um divisor de águas para que a nossa cultura e religiosidade sejam respeitas”.

Uma das principais lideranças religiosas do Rio, o babalaô Ivanir dos Santos, diz que o título da Grande Rio é uma conquista coletiva.

“É uma vitória para o Brasil, não só para as religiões de matrizes africanas. É a afirmação da diversidade e do combate ao ódio”, diz ele, que é interlocutor da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa).
“Que esse axé de Exu abra o caminho não só da Grande Rio, mas também o da democracia, do Estado laico e o da diversidade”.

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