Era das consequências

A pandemia causada pela Covid-19 revelou o flagrante descaso para com os sistemas públicos de saúde, nas diferentes sociedades em toda parte. Converteu-se num fator de insegurança da população, até mesmo de pânico. E mostrou o quanto os sistemas públicos de saúde e de outros setores estão despreparados para lidar com os presumíveis eventos da “Era das consequências”.

A “Era das consequências”, tempo de colher os amargos frutos plantados ao longo de décadas de inconsequências, começa a desdobrar-se aos nossos olhos de maneira acelerada. Muito se alertou para o que seria necessário fazer para evitá-la. Mas pouquíssimo se fez do que era para ter sido realizado por todos e do que apontaram as várias conferências, encontros e reuniões nacionais e internacionais sobre a situação socioambiental do planeta e das sociedades.

Com o decurso do tempo, ingressamos cada vez mais numa “Era” em que já começa a não surtir muito efeito o que venhamos a fazer para conter os danosos impactos e problemas gerados pelos inconsequentes modelos econômicos e políticos operacionalizados no cotidiano. Pior é não haver previsão alguma para reduzir, rever ou muito menos fazer cessar as inconsequências que movimentam as velhas e viciadas formas econômicas, políticas, financeiras, sanitárias e ambientais. Como afirmava Pablo Neruda: “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”.

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A “Era das consequências” na saúde pública

            Hospitais abarrotados e sobrecarregados, sistemas colapsados de saúde pública, desabastecimento de aparelhos de proteção individual e de medicamentos, insegurança sanitária e clínica generalizada, parcos investimentos na área da pesquisa científica. Evidências da irresponsabilidade generalizada para com a manutenção e aprimoramento da saúde pública, tendo como protagonista a mentira do Estado mínimo e a imposição de mentalidades trogloditas na gestão pública em pleno século XXI.

A “Era das consequências” na economia

Comércio estagnado, bolsas de valores em grande volatilidade, mercados em situação crítica, economias em recessão. A “Era das consequências” representa maior risco de retrocesso a modelos econômicos predatórios, exclusores, baseado em relações precarizadas de trabalho ou no trabalho semiescravo, movidos à mera concentração e financismo especulativo. Ter admitido a China como economia de livre mercado sem exigir as contrapartidas socioeconômicas e sanitárias necessárias à segurança do Ocidente impactou a economia planetária e deixou as economias ocidentais na condição de refém da locomotiva chinesa. Um grave erro dos países ocidentais terem se submetido ao modelo de globalização made in China e se desindustrializado em aspectos tão essenciais quanto aqueles que dizem respeito à saúde, à produção de certos gêneros, produtos e artigos básicos. Isso tudo gerou um conjunto de consequências socioeconômicas humanamente inadmissíveis. É preciso reformular os modelos da economia liberal para que funcionem livremente de modo mais inclusivo, solidário, cooperativo, ético e ambientalmente responsável, além de economicamente viável.

A “Era das consequências” na política

Há efetivos riscos à dignidade humana, às liberdades civis e aos direitos políticos, fundamentos dos regimes de perspectiva democrática. Na “Era das consequências”, autocratas, demagogos e plutocratas aproveitam-se da situação pandêmica e de outras crises para manipular e obter proveitos próprios, expandindo seus poderes em detrimento da população e das instituições democráticas. Os riscos são potencializados no cenário mundial em que os EUA vão perdendo a liderança econômica e financeira para a China. Nesse sentido, na “Era das consequências”, há risco de expansão de regimes políticos autocráticos, plutocráticos, cleptocráticos, demagógicos, populistas. É a reinvenção do atraso e a reabertura para perigosas situações, tais como a difusão de Estados opressores, inclusive sob os aspectos políticos, econômicos e tributários. No Brasil, a “Era das consequências” tende a marcar-se  pela naturalização das injustiças existentes no âmbito do próprio Estado, que assenta sua legitimidade em poderes excessivamente onerosos e instituições espoliadoras dos recursos públicos enquanto outras instituições e serviços públicos essenciais são sucateados e subvalorizados. Uma “Era” de retrocesso à velha e viciada fórmula da cacicagem partidária, de eleições livres de fachada ou simulacros, do voto de cabresto das periferias imposto pelas milícias, pelos caciques, pelo uso abusivo do poder econômico. É indispensável, portanto, vigiar atentamente os processos sociopolíticos em curso e evitar retroceder ao obscurantismo e ao autoritarismo político.

A “Era das consequências” na segurança pública

Os indicadores de criminalidades explodiram nas últimas décadas. O impacto sobre as populações de periferia, em especial sobre os jovens, pobres e negros é devastador. Os números da assepsia social ou das políticas de morte são estarrecedores e vêm sendo aplicadas aos segmentos mais vulneráveis e desassistidos. Os indicadores estão no Atlas da violência, no Anuário de segurança pública e outros estudos sobre a violência e criminalidade no país e fora dele. Na “Era das consequências” acentuam-se os modelos de segurança pública repressivos, policialescos, excessivamente militarizados, espetaculizadores das prisões e tragédias, voltados ao encarceramento em massa. Destinam-se ainda à criminalização da pobreza, dos movimentos sociais e dos adversários políticos. É fundamental romper com o controle social direcionado à manipulação política-eleitoral, em especial fundada na lógica da exclusão, da prisão e da morte. 

A “Era das consequências” e a questão ambiental

O período dos alertas já passou. Não é mais possível viver de meias verdades, meias medidas e de “faz de conta” no tratamento das graves questões ambientais que se abatem sobre o planeta. Na “Era das consequências”, no entanto, há riscos de se elevarem os níveis de poluição, de exploração irracional e de impactos nocivos sobre o que restou da qualidade do meio ambiente planetário. É preciso enfrentar e combater tais tendências. Para tanto, importa considerar e começar a cumprir os pactos e acordos internacionais sobre meio ambiente e desenvolvimento, a fim criar condições para assegurar um mínimo de qualidade de vida para todos os povos da terra.

A mentalidade da “Era das consequências” – o projeto de educação

Os padrões de mentalidade que marcam a “Era das consequências” assentam-se num projeto de educação logospirata e obscurantista. Uma educação tecnocrática voltada apenas para atender a necessidade da produção, do consumo e de mão-de-obra para o mercado. Não há espaço para contribuir para formação de pessoas, de qualidades humanas nem muito menos de cidadãos. O livre pensar político, artístico e científico não encontra espaço nos modelos de mentalidade da “Era das consequências”. Bastaria educação fundamental e técnica à massa popular. Uma educação mais ampla e esclarecedora é privilégio tão somente de alguns grupos ou segmentos sociais. Sob o ângulo da mentalidade, a “Era das consequências” é anticientífica, antifilosófica, superficial, supersticiosa, obscurantista e preconceituosa. Uma efetiva idade das trevas.

As inconsequências e seus efeitos

A intolerável “Era das consequências” foi gestada e imposta pelas “triviais” inconsequências arquitetadas pela logospirataria. A pandemia de coronavírus é apenas uma ilustração, uma caricatura dessa nova “Era de trevas”. Algo funesto e lastimável, sem dúvida, mas em vias de expansão.

Se não for feito o necessário para mudarmos de rota, seremos então meras vítimas da terceira lei de Newton (a da ação e reação): “a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. Essa lei, que opera no plano físico, pode manifestar-se também noutras esferas do real, inclusive na ambiental, na econômica, na política, nas relações sociais, ainda que ressalvadas as especificidades inerentes a essas dimensões da realidade.

É urgente que se recobre a lucidez, o bom senso, a noção de liberdade e de justiça para que possa romper com a leviandade ambiental, o primitivismo político e a negligência socioeconômica. É preciso buscar e reencontrar a justa medida das coisas nas relações laborais, políticas, econômicas, sociais, ambientais.

Não é nada fácil superar um vício, mas a existência digna no planeta, já ameaçada, estará seriamente comprometida se não suplantarmos os modelos tóxicos vigentes na “Era das consequências”. É essencial libertar a humanidade, onde quer que ela se encontre, da economia tóxica, da política tóxica, das ideologias tóxicas, das relações sociais, trabalhistas e ambientais tóxicas.

Por isso, enquanto não houver horizonte ou “luz no fim do túnel”, precisamos continuar tentando, insistindo até encontrar uma melhor perspectiva do que a nefasta “Era das consequências” ou, então, conformar-se com os aflitos versos de Carlos Drummond de Andrade, que torturam insuportavelmente nossa consciência de dignidade humana:

“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?” – C.D.A.                                                                                  

*Pontes Filho

Pontes Filho é doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). É professor do curso de Direito da UFAM, servidor público estadual, pesquisador de história da Amazônia e direitos socioculturais na região, com livros publicados sobre esses temas, dentre os quais: “Logospirataria na Amazônia”, “História do Amazonas”, “Terceiro ciclo”. Escreve frequentemente artigos para jornais, revistas e veículos impressos ou eletrônicos do jornalismo.

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