Estudo de proxalutamida no AM para Covid-19 omitiu riscos e direitos a pacientes

Destaque em prontuário de Zenite Gonzaga da Mota, que morreu em março deste ano, indica administração de proxalutamida, droga que foi utilizada em estudo irregular no Amazonas (Raphael Alves/Agência O Globo)
Com informações do UOL

MACEIÓ – Os responsáveis pelo estudo que usou a proxalutamida contra a Covid-19 em pacientes do Amazonas omitiram informações importantes do termo de consentimento para pacientes, segundo denúncia da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde) à PGR (Procuradoria-Geral da República (Conep) e ao Ministério Público Federal do Amazonas (MPF-AM).

A Conep — órgão que fiscaliza as pesquisas científicas no País — obteve o termo assinado por pacientes submetidos ao estudo e notou que, em comparação ao original, foram retiradas referências sobre riscos, direitos e até de contatos para urgências relativas ao medicamento experimental.

A pesquisa foi comandada pelo endocrinologista Flavio Cadegini, que está sendo investigado. Por causa da suspeita de falhas no experimento com pacientes, ele foi um dos indiciados pela CPI da Covid, do Senado, por “crime contra a humanidade”.

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Ao UOL, ele disse que o “formulário elaborado está de acordo com todas as normas aplicáveis, e o treinamento dado aos pesquisadores destacava todos os riscos e cuidados a serem tomados”. O Hospital Samel negou ter alterado o documento.

Antes do início dos estudos, a Conep avaliou a proposta dos responsáveis pelo estudo com a proxalutamida e aprovou um modelo de termo de compromisso, que foi alterado indevidamente antes de ser entregue e assinado por pacientes.

O termo serve para dar ciência de que o paciente participa de uma pesquisa com um medicamento sem comprovação de eficácia ou segurança prévia testada. Ao mesmo tempo, informa sobre os direitos e garantias de assistência, por exemplo.

O estudo terminou com 200 mortos e denúncias de irregularidades apontadas pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) entre as mais graves da história.

Menos páginas e informações

O termo original apresentado no protocolo de pesquisa à Conep tem oito páginas, detalhando vários pontos do estudo e alertando sobre questões de riscos. O documento obtido pela comissão e assinado por pacientes do Hospital Samel, entretanto, tem apenas três páginas —o que pode ser considerado uma infração ética.

“Verificou-se que, no termo apresentado pelo hospital aos autos do processo em curso, houve supressão total da seção ‘Como será o estudo?’, além da supressão de parte significativa da seção ‘Os procedimentos, seus benefícios, riscos e alternativas'”, aponta a representação do Conep enviada à PGR e ao MPF-AM, a qual o UOL teve acesso.

A comissão ainda não sabe se o mesmo formulário foi assinado por pacientes que participaram do estudo em outros hospitais (foram 12, no total). Os pesquisadores se recusaram a compartilhar os dados.

Conclui-se que tais irregularidades [no termo de compromisso] se relacionam sobretudo com a omissão de informações significativas e indispensáveis acerca de procedimentos da pesquisa, dos riscos associados, dos direitos dos participantes da pesquisa, da aprovação do estudo no sistema do CEP/Conep e dos meios de contato com o pesquisador.”.

Sem informação sobre risco para grávidas

No documento, uma das informações retiradas é considerada fundamental: a proibição da gravidez e o compromisso em fornecer métodos anticoncepcionais durante a pesquisa e por mais 90 dias aos pacientes.

Segundo Jorge Venâncio, coordenador da Conep, a medicação testada é um antiandrogênico que pode causar má-formação fetal, tanto ingerido por uma grávida, quanto por um homem que engravide a parceira.

Para ele, jamais uma informação dessas poderia ser retirada do termo. “Essa substância não tem registro, nem bula. Mas a bula de um equivalente, a dutasterida, proíbe a grávida de manipular o comprimido porque a substância pode ser absorvida pela pele e provocar má-formação”, diz.

Saliente-se, especialmente, que não constam no termo apresentado pelo hospital quais serão os procedimentos do estudo, os riscos associados à pesquisa e as informações necessárias de contracepção, essenciais à promoção da plena autonomia do participante da pesquisa. Trecho da representação da Conep enviada à PGR e ao MPF-AM.

Outra retirada do documento que chama a atenção é a de que o paciente pode desistir a qualquer momento da participação no estudo.

“A supressão da informação acima impossibilita o conhecimento dos direitos do participante da pesquisa quanto à garantia de plena liberdade de se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma”, diz o texto.

Foram retirados também os contatos para que o paciente pudesse buscar informações ou socorro em caso de alguma reação ou dúvida. “Tal medida se faz necessária e essencial ao participante da pesquisa, em razão de eventuais emergências, novos sintomas, dúvidas, esclarecimentos, sugestões ou reclamações relacionadas à pesquisa.”.

O estudo e as falhas

Segundo as investigações, o estudo com a proxalutamida foi feito entre fevereiro e abril deste ano com 645 pacientes em nove cidades amazonenses. Nesse período, apesar da letalidade muito alta, não houve suspensão dos testes para avaliação, como preconiza o protocolo científico.

Os números de mortes divulgados pelos pesquisadores são divergentes

  • Na apresentação oficial, em 11 de março, Flavio Cadegiani cita 153 óbitos no estudo (12 que teriam tomado a proxalutamida e 141 entre os que tomaram placebo)
  • Já em uma publicação no site Clinical Trials, em junho, ele aponta 35 óbitos entre pessoas que usaram a droga e 162 entre as que usaram placebo

Há outros pontos questionados pela Conep, que pediu para que as procuradorias investigassem o caso: no pedido de autorização, o pesquisador informou que iria fazer os testes em apenas um hospital, com 294 voluntários, em Brasília. Segundo a Conep, a ampliação do escopo ocorreu sem autorização. Além disso, não foi apresentada a composição do comitê independente que deveria acompanhar o estudo.

No último dia 4, em audiência na Câmara, a diretora-adjunta da 5ª Diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Daniela Cerqueira, disse que o órgão está investigando os centros que participaram do experimento e já constatou que foi importada uma quantidade de medicamentos superior à necessária para o estudo protocolado na Conep.

A proxalutamida é uma droga inicialmente testada para câncer de próstata e não há qualquer indicação científica que aponte melhora em pacientes com covid-19.

A droga chegou a ser elogiada pelo presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) e chamada de “nova cloroquina”. O estudo repercutiu no País, com direito a postagem do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, comemorando os bons resultados.

A importação e o uso de produtos contendo esta substância estão suspensos em pesquisas científicas no Brasil desde 2 de setembro, por decisão unânime dos técnicos da Anvisa.

O que o pesquisador e o hospital dizem

Procurado pelo UOL, Flavio Cadegiani informou que “o modelo de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) elaborado pelo pesquisador e encaminhado aos pesquisadores locais e hospitais participantes é exatamente o mesmo aprovado pela Conep, contendo todas as informações mencionadas”.

“O formulário elaborado está de acordo com todas as normas aplicáveis, e o treinamento dado aos pesquisadores destacava todos os riscos e cuidados a serem tomados, assim como os seus direitos e garantias em face da participação”, afirmou, em nota.

À reportagem, o Hospital Samel — que chegou a enviar o termo de compromisso ao MPF — alegou que não interferiu no documento.

“O documento enviado ao Ministério Público é o mesmo apresentado pelos pesquisadores responsáveis pela proxalutamida, pois a Samel, não sendo a responsável pela pesquisa, tampouco a patrocinadora do estudo, não possui um termo”, diz nota enviada ao UOL.

A rede de saúde afirmou também que existe um “documento falso com o logotipo da Samel que está circulando [nas redes sociais], mas este, na verdade, não existe”.

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