Exploração sexual em Roraima: do ‘seringal’ ao garimpo ilegal, o ‘aviamento’ continua vivo
18 de março de 2023
A prática do aviamento é criminosa porque endivida, compulsoriamente, a vítima, obrigando-a a pagar a dívida a todo custo (Bruno Kelly/institutosocioambiental)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium
MANAUS – A Operação Palácios, deflagrada pela Polícia Federal (PF) na manhã deste sábado, 18, em Roraima, com o objetivo de investigar e prender suspeitos de envolvimento em organização criminosa que recrutaria mulheres e adolescentes para exploração sexual na Terra Indígena Yanomami, traz um detalhe que chama atenção: o aviamento. A prática, que foi muito utilizada para “endividar” nordestinos quando chegavam aos seringais da Amazônia, continua viva, só que desta vez utilizada para a exploração sexual nos garimpos ilegais.
O aviamento era um sistema perverso praticado pelo dono do seringal, que botava na conta do trabalhador seringueiro todos os custos que envolviam o seu transporte, alimentação e manutenção no campo de trabalho. A mesma prática foi observada pela PF em Roraima. Em texto, a PF informou: “Por meio de perfis falsos em redes sociais, os aliciadores fariam o contato com mulheres e adolescentes, ofertando a possibilidade de trabalharem no garimpo ilegal, nas mais variadas áreas (inclusive, na prostituição), com promessa de ganhos irreais”, adiantou o texto.
Os trabalhadores explorados nos seringais da Amazônia do século passado, em sua esmagadora maioria nordestinos, já chegavam devendo ao ‘patrão’ (Reprodução/Internet)
Em relação à Operação Palácios, a PF detalhou: “Após serem convencidas, um motorista a serviço do grupo criminoso buscaria as vítimas aliciadas, levando-as até uma pista clandestina, onde eram transportadas por avião até a área do garimpo. Lá chegando, em condições de extrema precariedade, as vítimas eram informadas e cobradas pelos custos do transporte, que custaria até R$ 10 mil, gerando, a partir daí, uma dívida inicial com os gerentes do grupo criminoso”, concluiu a PF.
Escravidão, Nike, Prada…
De acordo com o professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a prática do aviamento, em Roraima, é a mesma do século passado. “Essa prática, que data de meados do século 18 para cá e ganha uma dimensão gigantesca com o advento da borracha e da castanha, não difere em absolutamente nada daquilo que chamamos, contemporaneamente, de ‘exploração análoga à escravidão’. É o mesmo tipo de exploração dos produtores de vinhos do sul do País”, comparou.
Ele continuou. “O que estamos presenciando com os relatos da PF é aquilo que chamamos de relações de produção não capitalistas ou pré-capitalistas praticadas pelo capitalismo. Não é uma coisa exterior ao capitalismo, é intrínseco. Para que esse ouro saia a um custo baixo do garimpo, para ser comercializado na Avenida Paulista ou Harrods, em Londres, ele precisa explorar até a última gota de existência da força de trabalho dessas pessoas. Isso já aconteceu com Prada, Nike, Iphone e só foi descoberto porque foi denunciado”, afirmou.
De acordo com a Walk Free Foundation, o Brasil melhorou sua posição nos níveis de escravidão global, passando de 94ª posição para a 143ª em 2020 (Bruno Fonseca/Agência Pública)
A selva é outra…
Questionado se a prática exploratória é uma “marca” da Amazônia, Luiz Antônio respondeu: “No imaginário coletivo isso poderia até ser um problema da selva porque é um lugar estranho, um lugar distante, e isso poderia ser ‘um corre’ na selva, mas não é! Isso é característica do capitalismo. É nessa sociedade que temos a exploração sexual, do corpo, o abuso, a violência, a tortura como modus operandi de produção de riqueza. No capitalismo, você não encontra uma pessoa explorando o corpo da outra para construir uma casa para morar, por exemplo, e sim para gerar riqueza, lucro”, lamentou.
O sociólogo Luiz Antônio concluiu sua análise afirmando que o problema não está em Roraima, no Amapá, no Acre, no Amazonas, no Pará ou mesmo na selva amazônica em si, é uma mecânica própria do sistema capitalista. “É inconteste a dinâmica do capital, que só consegue se reproduzir explorando a existência do outro, inclusive, as existências imateriais como teus sentimentos, tuas emoções e depois teu corpo e, inclusive, nesse caso de Roraima, teu sexo”, finalizou o cientista.
A operação
A Polícia Federal deflagrou, na manhã deste sábado, 18, a Operação Palácios, com o objetivo de investigar e prender suspeitos de estarem envolvidos em uma organização criminosa que recrutaria mulheres e adolescentes para serem exploradas em garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami (TIY).
Quatro mandados de busca e apreensão e quatro de prisão temporária expedidos pela Vara de Crimes contra Vulneráveis, da Justiça Estadual de Roraima, são cumpridos em Boa Vista, Roraima.
Os principais suspeitos de envolvimento direto com a ação são duas irmãs e o esposo de uma delas (Divulgação/PF)
As investigações tiveram início após uma adolescente de 15 anos ser resgatada na última terça-feira, 14, no contexto da Operação Libertação, durante uma abordagem no Rio Mucajaí, e ser levantado que ela estaria sendo vítima de exploração sexual em garimpos da região.
A Polícia Federal conseguiu identificar as pessoas que estariam envolvidas na logística e na operacionalização de um esquema de envio de mulheres e de adolescentes para serem exploradas, sexualmente, em regiões de garimpo, inclusive, mediante o engano destas.
Na tentativa de quitar dívidas cada vez maiores, as vítimas chegavam a realizar até 15 programas por noite, além de sofrerem ameaças caso não quisessem se prostituir. Os principais suspeitos de envolvimento direto com a ação são duas irmãs e o esposo de uma delas.
“Vítimas e pessoas que saibam de situações semelhantes podem denunciar, anonimamente, à PF, em Roraima, por meio do telefone (95) 3621-1500 ou comparecendo em nossa Superintendência, diz a PF.
O nome da operação faz menção à Lei Palácios, primeira lei contra a exploração sexual de crianças e tráfico de mulheres e que entrou em vigor na Argentina em 1913.
Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.
Cookies Estritamente Necessários
O cookie estritamente necessário deve estar ativado o tempo todo para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará habilitar ou desabilitar os cookies novamente.