Google mostra anúncio que deturpa conceito de feminismo como primeiro resultado

O interesse pelo termo e pela palavra misoginia cresceu durante o primeiro debate presidencial das Eleições 2022, marcado pela agressividade do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, contra a jornalista Vera Magalhães (Reprodução)
Com informações do UOL

SÃO PAULO – Na noite de domingo, 28, por volta das 22h, o Google registrou um pico nas buscas pelo termo feminismo. O interesse pelo termo e pela palavra misoginia cresceu durante o primeiro debate presidencial das Eleições 2022, marcado pela agressividade do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, contra a jornalista Vera Magalhães. O feminismo também ganhou espaço nas falas das candidatas Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil).

Só que quem procurou o termo no Google, para se informar, poderia terminar, segundo especialistas ouvidos por Universa, desinformado. Isso porque a produtora de vídeos Brasil Paralelo, conhecida pela divulgação de conteúdos revisionistas e alinhados com o conservadorismo, pagou por um anúncio na plataforma de buscas que contém informações falsas e equívocos históricos sobre o movimento organizado de mulheres.

Dependendo do navegador e das preferências dos usuários, o link para o artigo “O que é feminismo? Conheça a história e influência de um dos principais movimentos da idade moderna”, publicado em novembro de 2021, pode ser o primeiro conteúdo que o internauta vai encontrar ao realizar a pesquisa.

PUBLICIDADE

Historiadoras: artigo tem informações falsas e equívocos históricos

A reportagem fez o teste em uma aba anônima, ou seja, com o histórico de navegação limpo, e o texto da Brasil Paralelo foi o primeiro resultado. O artigo atribui, por exemplo, a origem do feminismo a um homem, William Godwin, que teria sido “o primeiro feminista” — o que a pesquisadora Natália Pietra Méndez, professora do departamento de História da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), onde ministra as disciplinas sobre história do feminismo e história das relações de gênero, afirma ser uma “distorção grotesca”.

De acordo com a professora, a bibliografia especializada situa as origens do feminismo em dois textos: um de Mary Wollstonecraft — esposa de William —, em um livro publicado em 1792 como uma resposta à Constituição Francesa; e outro de Olympe De Gouges, texto publicado em 1791 como uma resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. “São duas mulheres que dialogavam com as ideias iluministas do século 18, porém em uma perspectiva abolicionista e feminista”, afirma Natália.

De acordo com a professora, não existe, no texto patrocinado pela Brasil Paralelo, uma metodologia de pesquisa bibliográfica. “A autora seleciona, aleatoriamente, algumas informações que ajudam a ‘provar’ seu ponto de vista, mas sem dialogar com a bibliografia especializada. Por exemplo, ao identificar uma ou duas líderes feministas que seriam ‘anticristãs’, deixa de lado toda uma história da pluralidade dos feminismos, movimento protagonizado por mulheres vinculadas a diferentes ideias, entre elas cristãs”.

Professora do programa de pós-graduação em história da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) Ana Maria Colling diz que o texto apresenta ideias absurdas, como a que Marquês de Sade (filósofo francês famoso por textos picantes) teria sido um “protofeminista” e que a primeira onda do feminismo queria “o fim da monogamia, do casamento, liberdade sexual, incesto e sexo grupal”.

Falsa informação

O texto da Brasil Paralelo também diz que o movimento feminista “destrói a feminilidade”; “não trouxe benefícios às mulheres, mas sim, mais fardos sociais”; que gerou “homens menos cavalheiros e respeitosos”. Essas afirmações se referem a um senso comum, em relação ao movimento, ao dizerem que feministas não gostam de homens — todas equivocadas.

Além disso, o artigo diz que “o voto feminino foi uma concessão dada pelos homens, não uma conquista do movimento feminista” — informação falsa, afirma Ana. Quando Getúlio Vargas instituiu o voto feminino, em 1934, as mulheres já estavam lutando desde o século passado, pedindo voto e cidadania política. Quando ele capitaneou essa luta das mulheres, ele vira o inventor do voto feminino, e até hoje é lembrado por isso. Isso é um jogo político”, pontua a pesquisadora, autora do livro “A Cidadania da Mulher Brasileira: Uma Genealogia” (Oikos Editora, 2021).

“Em síntese, tudo o que está no texto é o que o conceito de ‘ideologia de gênero’ defende”, diz a professora, referindo-se à teoria que afirma que falar sobre desigualdades entre homens e mulheres é corromper famílias, que não há construção social de gênero e que essa seria uma “doutrinação” que educa crianças para serem transexuais — essas, também, informações falsas.

Texto é baseado em artigos de deputada conservadora de SC

O artigo “O que é feminismo”, da Brasil Paralelo, diz ser baseado em estudos da professora de História Ana Campagnolo. Só que a produtora não informa em seu texto que, além de ser graduada em História, pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Campagnolo é deputada estadual pelo PL, em Santa Catarina, e é conhecida por ser antifeminista e bolsonarista. Ela concorre à reeleição neste ano. Em seu perfil no Instagram, alega ser “a única mulher conservadora no parlamento catarinense.

Em 2016, Ana entrou na Justiça contra a professora e historiadora Marlene de Fávéri, pesquisadora em estudos de gênero e feminismo do programa de pós-graduação da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina). A deputada pediu, na época, indenização de R$ 17 mil, por dano moral, alegando “discriminação, intimidação, ameaça velada via e-mail, exposição discriminatória, humilhação em sala de aula e tentativa de prejudicar, academicamente, a autora”, após a aluna ser reprovada no mestrado.

A deputada acusou a professora de perseguição por “ser cristã e suas convicções pessoais não afinarem com a ideologia feminista”. Ana perdeu o processo em duas instâncias. O suposto assédio religioso que ela alegou ter sofrido foi julgado improcedente e o recurso não foi aceito. O caso foi encerrado em agosto de 2019.

Artigo é manipulação da história por pensamento negacionista, rebate professora

A professora Cristina Scheibe Wolff, integrante do Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), é editora da Revista Estudos Feministas e pesquisa feminismo e antifeminismo na internet. Ela afirma que, a partir da eclosão de movimentos feministas, a partir de 2011, como a Marcha das Vadias, e movimentos como #MeToo, houve também uma reação de movimentos conservadores.

A professora aponta manipulação da história, por meio de uma corrente de pensamento revisionista e negacionista. Para ela, esse tipo de trabalho patrocinado pela Brasil Paralelo, no Google, coloca em xeque pesquisadores brasileiros sérios. “Existe um campo de estudos de gênero no País que é, reconhecidamente, forte no mundo todo, por estudos científicos baseados numa discussão acadêmica, construída em cima de uma metodologia e que passa por uma discussão das teorias, de pesquisas em dados, antropológicas, sociológicas, históricas”, diz Cristina. “Esse artigo faz de conta que tudo isso não existe. É negacionista porque inventa outra história, uma história equivocada”.

Brasil Paralelo é um dos principais anunciantes políticos no Google

Em junho deste ano, o Google lançou o relatório de transparência, ferramenta que permite a visualização dos nomes de quem paga por propaganda política em plataformas como YouTube e sites que usam o AdSense — naquele mês, a produtora era a maior anunciante do País, com R$ 363 mil gastos em links patrocinados.

Hoje, no auge da campanha eleitoral, a produtora ainda está entre os cinco maiores anunciantes políticos da plataforma, ao lado de Lula (PT), Bolsonaro, Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), os quatro candidatos líderes nas pesquisas eleitorais. Desde novembro de 2021, data em que o Google mudou suas regras sobre conteúdo político e passou a exigir a verificação dos anunciantes com interesse em campanhas políticas, a Brasil Paralelo já investiu R$ 463 mil somente em anúncios no Google.

Procurado por Universa, o Google enviou nota diferenciando resultados orgânicos das pesquisas — quando os algoritmos indexam e raqueiam os links considerados mais relevantes para uma busca — para o que é conteúdo pago. “Os anúncios exibidos na busca do Google são, claramente, identificados e exibidos em área distinta dos resultados orgânicos”, diz.

A empresa afirma que, para fazer campanhas de publicidade no buscador ou no YouTube, os anunciantes precisam respeitar as políticas. Por exemplo, não é permitida a veiculação de conteúdo sexualmente explícito ou discriminatório. Mas não existe nada a respeito de informações falsas. O Google diz que não tem capacidade de fazer uma avaliação editorial desses anúncios.

A reportagem procurou a produtora Brasil Paralelo e a deputada Ana Campagnolo, que não responderam até a publicação deste texto.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.