Halloween: bruxas aterrorizavam porque tinham poder e conhecimento

Um encontro de "bruxas" fantasiadas, reunidas para um retrato do Dia das Bruxas aproximadamente em 1910. (Transcendental Graphics, Getty Images)
Da Revista Cenarium Amazônia*

SÃO PAULO – Se é uma pessoa sombria e malcuidada que vem à sua cabeça quando o assunto são bruxas, saiba que nem sempre foi essa a imagem que estas mulheres tiveram na história da humanidade. Até os séculos 16 e 17, bruxas eram mulheres jovens e muito atraentes, que despertavam paixões por onde passavam.

Os homens acreditavam que esse apaixonamento acontecia em razão de uma magia, quando na verdade só estavam experimentando sentimentos comuns aos humanos. Quem explica isso é a socióloga e escritora Isabelle Anchieta, que ajuda a contar de onde vem a ideia de que já existiram —e ainda existiriam— bruxas más soltas por aí.

Cena da peça ‘As Bruxas de Salém’, montada pelo grupo de teatro Satyros – 15.jun.2023-Karime Xavier/Folhapress

Ela conta que, a partir de uma época chamada Renascimento, a beleza começa a ser associada a coisas boas, e as pessoas más são associadas à velhice. É como se, quanto mais tempo de vida uma pessoa tivesse, mais experiência em ser má ela também teria. E é nesse momento que as bruxas (ou a ideia sobre elas) se modificam para sempre.

PUBLICIDADE

Bonitas ou feias, jovens ou idosas, as bruxas surgem no imaginário do mundo a partir do século 13. Não eram seres mágicos, mas sim mulheres “normais”, com ocupações como parteiras, benzedeiras, médicas dos pobres. “Elas sabiam usar as ervas, tinham contato com a natureza e começaram a fazer uso desse conhecimento para salvar as pessoas“, diz Isabelle.

Acontece que, nessa época, começaram a surgir pessoas insatisfeitas com o tanto de poder que a Igreja Católica vinha acumulando. Estas pessoas, então, se organizavam em grupos com outros indivíduos que tinham um pensamento parecido com o seu, e isso enfureceu a Igreja. Surgia, assim, o “movimento herético“, que era como a Igreja chamava todo mundo que se opunha a ela e praticava a religião de outras formas.

A escritora italiana Silvia Federici estuda o feminismo e escreveu o livro “Calibã e a Bruxa – Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva” (editora Elefante). Nele, ela diz que, na Igreja, as mulheres “não eram nada“, mas entre os heréticos eram consideradas iguais aos homens. Elas tinham o direito, por exemplo, “de ministrar os sacramentos, de pregar, de batizar e até mesmo de alcançar ordens sacerdotais“.

Ilustração que reproduz o julgamento de uma das bruxas de Salém, nos EUA, que em 1692 considerou mais de 200 pessoas culpadas por bruxaria – Wikimedia Commons

E, se essas mulheres haviam conquistado o direito de ser donas de sua espiritualidade, elas também desejavam ter controle sobre questões que diziam respeito ao seu corpo —a vontade de ter ou não filhos, por exemplo. O que era apenas alguém cuidando da própria vida foi ganhando ares de fake news quando se passou a falar aqui e ali que estas mulheres produziam poções que impediam as pessoas de se reproduzir.

Na Alta Idade Média, que teve início no ano de 476 d.C., a Igreja Católica já via isso com maus olhos. Muitos anos depois, entre 1346 e 1353, o mundo viveu a pandemia de peste negra, uma doença que matou 200 milhões de pessoas. E foi depois desta tragédia mundial, explica Silvia Federici, que as mulheres consideradas hereges foram ganhando boa parte da imagem de bruxas que se sabe hoje.

Era dito, por exemplo, que as mulheres não só usavam aquelas tais poções mágicas e que namoravam muitas pessoas livremente, mas também que elas “cultuavam animais e praticavam voos noturnos e sacrifícios de crianças“.

É um pouco uma disputa de poder“, afirma Isabelle Anchieta, que escreveu o livro “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno” (Edusp). “Não é porque essas mulheres não tiveram poder, mas exatamente porque elas passaram a ter muito poder, e isso não só nessas comunidades rurais em que elas viviam, mas entre a aristocracia.

Ela explica que era como se houvesse duas categorias de coisas sobrenaturais: uma aceitável, porque seria mediada pelos homens com Deus, e outra que não podia ser aceita, porque era mediada pelas mulheres com ninguém menos que… o “diabo”.

Começa assim o que ficou conhecido como caça às bruxas, associando para sempre a ideia de bruxaria a algo negativo. “Essa perseguição dura muitos séculos“, diz Isabelle. No início do século 15, mostra o livro de Silvia, as supostas bruxas se transformaram no principal alvo de perseguição aos hereges. E Isabelle conta que isso se estende até o século 18.

Denunciadas por desconhecidos e até por seus vizinhos, as mulheres que supostamente praticavam bruxaria eram condenadas a duros castigos físicos, e na maioria das vezes até à morte. São famosas as histórias de mulheres que foram parar na fogueira.

Por mais que esse tipo de coisa tenha acabado lá pelos anos 1700, Isabelle diz que ainda acontecem situações que se parecem com a caça às bruxas. “A gente tem ainda hoje mulheres associadas à sabedoria, aquelas que desafiam o poder, sendo vistas como mulheres ameaçadoras“, compara.

A socióloga explica que, na história, as coisas não acabam assim, de repente um rompimento num dia certinho e tudo para de acontecer, com as pessoas passando a pensar diferente. Mas que de lá para cá, aos poucos, mudanças positivas aconteceram, como a possibilidade de as mulheres se educarem, se autogovernarem e decidirem sobre suas próprias vidas.

É muito interessante estudar as bruxas para a gente entender que a criação do estereótipo, ou seja, a redução das pessoas a duas ou três características negativas, é perigosa. A gente passa a odiar outra pessoa que a gente conhece superficialmente, mas na verdade a gente odeia uma caricatura que foi criada dela“, diz.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.