Incerteza sobre a realização do ‘Réveillon de Iemanjá’ preocupa líderes de religiões de matriz africana

Incerteza sobre realização de Festival que celebra religiões de matriz africana preocupa entidades (Divulgação)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – Nesta semana, o vereador Rodrigo Guedes (Republicanos) revelou no plenário da Câmara Municipal de Manaus (CMM) a preocupação sobre a realização do 12º Festival Afro Amazônico de Yemanjá, que ocorre entre os dias 29 de dezembro e 1º de janeiro na capital. Segundo o parlamentar, os movimentos não estão conseguindo resposta do poder público para organização o evento.

Guedes destacou a importância da diversidade e do respeito às festividades dos povos tradicionais. “O Estado é laico, eu sou cristão católico, mas temos que respeitar enquanto Estado quem pensa diferente e não apagar sua história e suas manifestações culturais“, disse.

O vereador pediu aos demais colegas de plenário que a laicidade fosse estabelecida, ou seja, que não haja a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais que impeçam algumas religiões de terem privilégios sobre as demais.

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Desde 2010, o “Réveillon de Iemanjá”, como é popularmente conhecido, é organizado pela Associação de Desenvolvimento Sócio Cultural Toy Badé e pela Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana (Aratrama), e reúne diversas manifestações culturais dos povos afro-brasileiros à margem das águas da Praia da Ponta Negra, na zona Oeste da cidade.

Realização do Festival Afro-Amazônico de Yemanjá, em 2019, antes da pandemia (Divulgação)

Em todos os anos, as organizações tiveram apoio do Governo do Amazonas e da Prefeitura de Manaus, mas, conforme relato de Guedes, em 2022, as tratativas com a Prefeitura têm sido difíceis. A REVISTA CENARIUM procurou o gestor cultural Xɛ́byosɔnɔ̀n Alberto Jorge Silva, que confirmou preocupação com a realização do evento.

Ele informou que, em reunião com o secretário municipal de Cultura, Alonso Oliveira, e do Estado, Marcos Apolo, foi dito que a Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult) não tinha verbas para custear sequer a estrutura metálica, disponibilizada no ano passado.

Na avaliação de Alberto, a Prefeitura não tem como criar embargos e dificuldades para a realização do festival. “Isso incorre em racismo estrutural, segregação religiosa, preconceito religioso. A Prefeitura de Manaus não tem como negar a megaestrutura natalina, montada na Ponta Negra, a megaestrutura para o Réveillon Gospel. O Festival de Yemanjá não custa 20% do valor gasto só nesses espaços ‘cristãos’ bancados com dinheiro público“, afirma.

O Réveillon de Iemanjá acontece, oficialmente, há 12 anos na Praia da Ponta Negra (Divulgação)

A Prefeitura de Manaus construiu um túnel com 30 mil lâmpadas de LED, com 130 metros, no calçadão da Ponta Negra para as comemorações natalinas e anunciou a criação do “Ano Novo Cristão“, com a presença da cantora gospel Aline Barros, com o cachê de, em média, R$ 80 mil por show. A artista Simone Mendes, da ex-dupla Simone e Simaria, também foi anunciada para o “Réveillon Sustentável“.

Cenários natalinos instagramáveis montados pela Prefeitura de Manaus, na Ponta Negra (Divulgação)

O prefeito de Manaus, David Almeida, justifica que 45% da população manauara é evangélica e, por isso, a existência do evento gospel é importante. “Quero respeitar todas as formas culturais, artísticas e religiosas. Vivemos em uma sociedade representativa, […] Então estamos preparando uma grande festa da virada para 2023 com muito louvor, adoração e convidados especiais, em uma noite que será inesquecível“, disse durante anúncio da festividade.

A recente proposta do vereador Raiff Matos (DC) quer tornar obrigatória a presença de artistas gospels em eventos públicos da Prefeitura de Manaus. Os eventos são o Aniversário de Manaus, Festival Sou Manaus Passo a Paço e Réveillon da Cidade.

O Projeto de Lei nº 415/2022 afirma que “a requerida inclusão nos principais eventos realizados anualmente pelo Poder Executivo Municipal, contribuirá com a valorização cultural das atrações musicais do segmento gospel regional, e ainda com a socialização familiar e cristã“.

Falta diálogo

Alberto Jorge disse à reportagem que tenta contato com David Almeida e Alonso Oliveira pelo WhatsApp, mas até o momento segue sem resposta. “Para que não se diga que não buscamos diálogo, procurei o prefeito de Manaus, David Almeida, antes de recorrer a outras instâncias do Direito“, destaca.

Cremos que numa sociedade civilizada e numa República Democrática de Direito, a laicidade do Estado e igualdade de direitos não são favores ou exceções, acima de tudo são deveres previstos na Constituição“, reforça Alberto.

Xɛ́byosɔnɔ̀n Alberto Jorge Silva (Ricardo Oliveira/Revista Oliveira)

Alberto conta, ainda, que várias lideranças de movimentos sociais LGBTQIA+, Negro e Afro Religioso, estão entrando em contato e prestando apoio. Segundo ele, todos querem uma reunião de lideranças com os vereadores da Câmara Municipal de Manaus para solicitar uma intermediação. Até o momento, o gestor confirma que prefere o diálogo com a Prefeitura para resolver as questões.

Primeiramente vamos buscar, mais uma vez, dialogar com a Manauscult, se houver embromação e má vontade como nos anos anteriores, partiremos para medidas mais pesadas, não só no campo político, mas no campo jurídico“, pontua Xɛ́byosɔnɔ̀n Alberto Jorge Silva.

Em resposta à CENARIUM, a assessoria da Manauscult negou a fala do vereador Rodrigo Guedes. “O Réveillon tem nosso apoio. Sempre teve. Esse ano não será diferente“, disse a assessora de imprensa, informando que o Réveillon de Iemanjá terá apoio da Prefeitura com estrutura de palco, som, iluminação, gradil, banheiros químicos, tendas etc. A assessoria garantiu também que o órgão irá “receber o Sr. Alberto para definir os detalhes“.

Não houve nenhuma tratativa, contato comigo ou com o Jonathan Azevedo, que é o presidente da Associação de Desenvolvimento Sócio Cultural Toy Badé“, rebate Alberto.

Segundo ele, em anos anteriores, a Manauscult foi fundamental para que o festival se tornasse uma das três maiores manifestações culturais de Yemanjá no Brasil. Alberto Jorge lamenta o tratamento que o evento dos povos tradicionais tem recebido na atual gestão municipal.

Em 2019, a cantora Margareth Menezes foi atração no Festival Afro Amazônico de Yemanjá (Divulgação)

Em 2021, recebemos a pior e mais franciscana estrutura em 11 anos oficiais de Festival, inferior a isso só quando não recebíamos nenhuma ajuda do poder público“, diz Alberto. Ele lembra que no ano de 2019 o festival contou com grandes atrações, como Margareth Menezes e uma megaestrutura.

Neste mesmo ano, o festival teve um público circulante de cerca de 35 mil pessoas, segundo dados da Prefeitura de Manaus e do Centro Integrado de Comando e Controle (CICC).

Uma coisa é certa: a exemplo do que se faz há mais de 60 anos, quando os evangélicos neopentecostais sequer punham os pés na Ponta Negra para batizar quem quer que fosse, nós, da Macumba, estaremos na Praia da Ponta Negra nos dias e noites de 29, 30 e 31 de dezembro de 2022 para manter nossa tradição.
A intolerância religiosa não fincará raízes nas Águas de Yemanjá
“, afirma Alberto.

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