JBS manteve relação com desmatamento ilegal por meio de parte de seus fornecedores de gado
24 de abril de 2023

Da Revista Cenarium*
SÃO PAULO – Maior empresa de alimentos do mundo, a JBS manteve relação com o desmatamento ilegal por meio de parte de seus fornecedores de gado de 2019 a 2022. A Folha teve acesso a uma compilação com 68 casos de desmate em fazendas, com indícios de ligações direta, indireta ou potencial com a JBS, na Amazônia e no cerrado, durante o período.
A companhia afirma que 69% desses episódios foram identificados por suas políticas de monitoramento, e os fornecedores, bloqueados. A JBS nega que os demais 31% sejam fornecedores.
Reunidos pelas ONGs Mighty Earth e AidEnvironment, os casos somam 125,4 mil hectares de áreas desmatadas — dos quais 73,7 mil hectares são de áreas protegidas, como reservas legais e APPs (áreas de preservação permanente).

Como ponto de partida para identificar os casos de desmatamento, o estudo usa o sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que fornece alertas diários de desmatamento.
“Os alertas são confirmados por imagens de satélite de alta resolução do [sistema] Planet”, diz Joana Faggin, pesquisadora sênior da AidEnvironment, ONG focada em pesquisas sobre agricultura, com escritórios na Holanda, Indonésia e Uganda.
A confirmação de que os desmates aconteceram em áreas protegidas é feita, então, pelo cruzamento dos dados com os cadastros ambientais rurais (CARs) das propriedades, que informam qual área do imóvel é destinada à proteção.
Já a conexão da propriedade com a compra de gado pela JBS é feita pelos pesquisadores por meio das GTAs, as guias de trânsito animal, que informam as fazendas de origem e de destino do gado.
Das 68 fazendas com desmatamento verificado pela ONG, 21 são fornecedoras diretas de gado para a JBS. Essa conclusão é possível porque os GTAs mostram uma relação direta: o gado sai da fazenda onde houve desmatamento e vai diretamente para um frigorífico da JBS.
Outros 43 casos de desmatamento aconteceram em fazendas de fornecedores indiretos, ou seja, em propriedades que forneceram o gado para uma segunda fazenda, que, por sua vez, vendeu para a JBS.
“Nesses casos, há uma GTA ligando essa propriedade a uma outra fazenda, ligada por outra GTA à JBS. Aqui verificamos a data, por exemplo: no mês de maio, o gado passou da primeira para a segunda fazenda, que depois de maio vendeu para o frigorífico”, explica Faggin.
“No entanto, não calculamos a idade do gado, ou quanto tempo ficou na segunda fazenda, o que permitiria estabelecer uma ligação mais alta, equivalente a de fornecedor direto”, ressalva.
Há, ainda, um terceiro nível de conexão, o potencial, que corresponde a 4 dos 68 casos. Para eles, não há dados suficientes para atestar o fornecimento, mas indícios, como no caso de o frigorífico ser o principal exportador de carne de um município com desmatamento.
“O frigorífico deveria estar atento a esse desmatamento. É um alerta. Já nas ligações média e alta [que comprovam fornecimento direto ou indireto], o frigorífico precisa verificar aquele fornecedor”, distingue Faggin.

A Mighty Earth, ONG com sede nos EUA, dedicada a campanhas sobre desmatamento ligado à indústria, solicitou à JBS que verificasse cada um dos 68 casos enviados à diretoria de sustentabilidade da empresa em 5 de dezembro. A reportagem teve acesso à troca de e-mails.
Em 7 de janeiro, a diretoria de sustentabilidade da JBS respondeu que os casos não poderiam ser verificados por serem baseados em alertas do sistema Deter, não do Prodes — ambos pertencentes ao Inpe.
“O Inpe desaconselha seu uso porque é um sistema de alerta precoce, sem a necessária granularidade e precisão”, diz o e-mail.
À Folha, o Inpe afirma que o Deter “sempre se mostrou confiável e preciso, alcançando mais de 90% no índice de acertos das suas detecções”.
Em nota assinada pelos técnicos Cláudio Almeida e Luis Maurano, responsáveis pelo Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas, o órgão esclarece que o Prodes foi escolhido como base para a certificação das cadeias produtivas em políticas de compliance ambiental, como nos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) da Carne, “por este ser o dado oficial do Estado e ter uma atualização anual”.
“A não utilização dos dados do Deter se baseia nestas características, e não no fato do Deter ser menos preciso”, completa o Inpe. “A ocorrência de um polígono Deter em uma propriedade, ainda que não gere bloqueio imediato de um favorecedor, deve ao menos servir como um alerta para o comprador de produtos oriundos dessa propriedade.”
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O último resultado da auditoria do TAC, assinado pela JBS junto ao Ministério Público Federal (MPF), no Pará, mostra, com base no monitoramento do sistema Prodes, evidências de irregularidades em 44% do gado adquirido pela empresa naquele estado, entre julho de 2019 e junho de 2020.
À Folha, a JBS voltou a defender o uso do sistema Prodes para verificação de desmatamento e afirmou que o levantamento da ONG “requenta informações antigas” a partir de “metodologia falha” que “desrespeita o protocolo do Ministério Público Federal”.
“Em 69% deles [os casos apontados no levantamento], o monitoramento da empresa já havia identificado que algum de seus critérios socioambientais não havia sido respeitado e, seguindo o Protocolo de Monitoramento do Ministério Público Federal e a Política de Compra Responsável da Companhia, a JBS havia bloqueado o fornecedor”, afirma. “Os outros 31% não estão na base de fornecedores da empresa.”
A assessoria de imprensa da companhia se negou a identificar os casos e não explicou se fornecedores indiretos ou ex-fornecedores poderiam estar inclusos nos 31% que não constam na base.
“A JBS mantém, há mais de dez anos, um sistema geoespacial que monitora, diariamente, seus fornecedores diretos e que já bloqueou 15 mil deles por desrespeitarem os critérios socioambientais da empresa e do setor”, diz também a empresa.
Na quinta-feira, 20, a ONG Mighty Earth enviou a acionistas e executivos da JBS a denúncia dos 68 casos. A entidade pede que os acionistas levem o tema ao Conselho da Administração da JBS, que se reúne em assembleia-geral nesta segunda-feira, 24.
Para João Gonçalves, diretor da Mighty Earth no Brasil, “em termos de transparência, a JBS deixa muito a desejar, escolhendo, cuidadosamente, o que vai divulgar”.
O desafio de monitorar os fornecedores indiretos da carne é comum a todo o setor da pecuária, já que o gado pode ser transportado para diferentes fazendas até o abate. A JBS tem uma meta voluntária de rastrear os fornecedores indiretos até 2025, eliminando os elos com fazendas que tenham desmatamento ilegal. No entanto, o controle do fornecimento direto ainda sofre com falhas.
Em novembro, a empresa admitiu ter comprado 8.785 bois ilegais fornecidos, diretamente, ao frigorífico pelo maior desmatador do País, segundo reportagem da Repórter Brasil.
“A JBS não comprova que controla os fornecedores”, afirma o coordenador do Radar Verde, Alexandre Mansur. A iniciativa avaliou, no último ano, o controle e a transparência sobre a cadeia da carne a partir de dados fornecidos pelas empresas sobre suas políticas de combate ao desmatamento.