Maior acervo on-line de música indígena da Amazônia celebra 10 anos

Em 2013, eu lançava o livro-CD “A música das cachoeiras: do Alto Rio Negro ao Monte Roraima”. Patrocinado pelo edital nacional Natura Musical 2012, por meio da Lei Rouanet, esse projeto gravou e organizou um dos maiores acervos on-line de música indígena do Brasil, no quesito Amazônia Ocidental.

Vou contar um pouco da história desse projeto. Por meio dele, vou mostrar como os estudos em nível de pós-graduação sobre cultura e cosmologias amazônicas podem contribuir para diversos tipos de produções e reforçar esse novo panorama científico-social pluralista contemporâneo.

Desde muito jovem, componho músicas e produzo discos. Durante o curso de Filosofia da Ufam, que finalizei em 2009, e o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, minha visão sobre as Amazônias, seus povos e suas culturas tomou outros rumos.

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O livro-CD ‘A música das cachoeiras: do Alto Rio Negro ao Monte Roraima’ foi lançado há 10 anos e é um dos maiores acervos on-line de música indígena do Brasil (Divulgação)

Na execução do projeto “A música das Cachoeiras”, apesar de ainda muito inexperiente, eu não me limitei a estudar a música indígena “tradicional”. Não poderia perder a oportunidade de conhecer novos compositores e músicas não-tradicionais indígenas. Em São Gabriel da Cachoeira gravei, além do repertório tradicional de cantos e instrumentos sagrados, uma série de performances de compositores indígenas que tocam música Kuximawara, com teclados e guitarras. Faz dez anos que ouvi e vi, pela primeira vez, a tal da música Kuximawara.

Em certo sentido, esse tipo de música não foi muito apreciada pelos acadêmicos mais conservadores, patrocinadores e imprensa. Essa é a verdade. Eles insistiam que, por conta das guitarras e dos teclados, “aquilo” já não era mais música indígena.

As flautas tradicionais e repertórios sagrados, sempre muito valorizados e elogiados, silenciavam, assim, os novos compositores indígenas e sua música “moderna”, ou melhor, “pós-moderna”. Havia um clima, no ar, que insistia na imagem do “indígena de Cabral”, como define o poeta roraimense Eliakin Rufino, estereótipo preso naquele contato inicial há mais de 520 anos. De lá para cá, tudo mudou e é bem provável que nem Cabral reconhecesse, e mesmo aceitasse, seus descendentes de hoje. Por que haveria obrigação de congelar os povos indígenas no tempo? O tempo é implacável.

Cada um deveria cuidar de sua vida. Isso é princípio republicano. Ouvir mais e classificar menos. A sociedade nacional precisa entender que ninguém tem o direito de falar pelo outro. Falar como o outro deveria agir para ser o que ele diz ser, indígena ou negro, por exemplo, é uma das mais consideráveis “falhas” da razão ocidental. Uma violência. Em outras palavras, uma “fuleiragem” sem tamanho. E é essa falha no sistema, essa violência e essa “fuleiragem” que estão a implodir a cultura científica e forçando o aprimoramento de seus projetos.

Vou citar um exemplo do próprio público de internautas interessados em música índigena. Quando foi publicada a primeira lista de músicas, houve um comentário no SoundCloud do projeto que afirmava que o acervo sonoro deveria ser organizado de modo que as primeiras músicas fossem as tradicionais e, em seguida, as não tradicionais.

O sujeito transcendental de Kant, ou seja, a razão ocidental mais uma vez operando por meio do comentário não dava espaço para novas músicas indígenas. Munido desses dados e experiências de negação sobre a diversidade das músicas indígenas, nas Amazônias, em uma tentativa de reverter esse quadro negativo, resolvi estudar no doutorado em Antropologia Social, também na Ufam, a música Kuximawara de São Gabriel da Cachoeira. A ideia era descrever, conhecer e empoderar esse gênero musical que conecta os dançarinos e músicos de hoje aos mais antigos ensinamentos musicais dos povos indígenas do Alto Rio Negro.

Nesse percurso, demonstro como a musicologia indígena, isso mesmo, musicologia indígena, e não etnomusicologia, continua a pôr em prática suas mais antigas teorias musicais entre os apreciadores e fazedores deste tipo de música. Estamos falando das narrativas sobre Jurupary/Koai/Bissiu, personagens musicais da cosmologia Baré, Baniwa e Tukano, respectivamente.

Jurupary ensinou para que servem os sons musicais. Melodias e danças para animação do grupo, para paquera, sedução, para competição, para demonstrar domínio do sono, do cansaço, de longos repertórios, de longas festas. Sem cumprir as premissas musicológicas de Jurupary, não é possível garantir uma boa relação com os waimahsã (espíritos da floresta, tradução bem equivocada e teatralizada, caso contrário, as consequências podem ser terríveis (doença, morte). A música, no contexto indígena, é também um “xamanismo coletivo” que visa manter o equilíbrio entre humanos e não humanos.

Pois bem, enquanto eu finalizava o mestrado em Sociedade e Cultura, ainda em 2012, estava-se diante do esgotamento do paradigma científico. Nas aulas, eu fui entendendo que a ciência buscava alianças com outros conhecimentos para um novo modelo de mundo ainda possível. No doutorado aprendi uma lógica musical indígena que não operava com a “organização racional dos sons”. Jurupary não forneceu uma “escala musical”, como premissa, que marca a música indígena. Ele ensinou que o corpo humano é um modelo para afinações. O tamanho das pernas, braços e mãos são sempre comparados com o tamanho das flautas sagradas ou não.

Hoje em dia, como professor colaborador da PPPGSCA-Ufam, me sinto retornar à casa depois de uma longa viagem. Nos dias de hoje, mais de uma década após o começo da viagem, a vanguarda da teoria pós-moderna ainda não se encontra totalmente aplicada à realidade burocrática acadêmica, mas encontramos muitos avanços.

Autores indígenas vêm marcando presença em diversos programas de pós-graduação da Ufam, da Geologia à Antropologia, das tecnologias às humanas. A presença dos conhecimentos indígenas interessa a todos os Programas de Pós-Graduação da Ufam e UEA. Mas é por meio das Ciências Humanas, em especial, da Antropologia, que se faz um esforço para que sejam reconhecidos como autores de um conhecimento simétrico à ciência hegemônica, pois de fato o são.

Desse modo, um acervo de música indígena, que iniciou com a modesta pretensão de difundir e fortalecer a música indígena, na internet, vem sendo fonte de reflexões teóricas e metodológicas que desconstroem o próprio conceito de música ocidental. Isso me faz pensar sobre as políticas públicas locais.

Com todo respeito aos meus colegas da música erudita, mas, e se houvesse investimentos para atividades de pesquisa e produção que visassem conhecer melhor a música dos povos indígenas? E se a formação dos corpos artísticos do Amazonas fossem contra-hegemônicos? Quero dizer, uma orquestra de especialistas em festas e instrumentos indígenas seria um projeto científico-cultural-artístico com potencialidades exclusivas para nossa região. Pergunto: e se o Teatro Amazonas acolhesse grandes rituais indígenas de iniciação?.

Isso deveria ser obrigação e uma reparação em relação à construção de um teatro que ceifou muitas vidas indígenas em sua construção.

(*) Doutor em Antropologia Social, mestre em Sociedade e Cultura da Amazônia, filósofo, produtor cultural e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)
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(*)Doutor em Antropologia Social, mestre em Sociedade e Cultura da Amazônia, filósofo, produtor cultural e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)

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