MANAUS – A previsão do tempo nesta quinta-feira, 17, em São Felix do Xingu, no Pará, é de tempestade. Nada fora do padrão para a região. Anomalia é outro tipo de tempestade estacionada lá desde o ano passado: o da baixa cobertura vacinal, retrato da desigualdade no acesso à imunização contra a Covid-19 no Brasil.
O município é o com menor percentual de população vacinada do Brasil, 15,5% com primeira dose, situação que se mantém desde novembro.
É um microcosmo da desigualdade vacinal, cujo epicentro é a Amazônia Legal. Num momento em que Estados do Centro-Sul avançam na vacinação de crianças e no reforço e já se fala até de quarta dose, estão na Amazônia Legal nove dos dez municípios com menor percentual de aplicação da primeira dose do Brasil, mostra um levantamento feito pelo GLOBO.
O levantamento se baseou em informações dos 5.570 municípios mais o Distrito Federal compiladas pelo Observatório da Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 6 de fevereiro, a partir da base de dados do Ministério da Saúde.
A tempestade perfeita é gerada pela combinação de falta de planejamento nacional para distribuição e operacionalização da aplicação das vacinas em regiões de população dispersa e acesso historicamente difícil, falta de campanhas de informação e negacionismo.
O resultado é a criação de desertos vacinais, onde a população desprotegida alimenta bolsões para perpetuação da pandemia, surtos e abre caminho para o surgimento de novas variantes do coronavírus.
O denominador comum de todos os municípios com baixa vacinação é o baixo IDH, além dos fatores já mencionados.
“São lugares quase sempre remotos, mas a Covid-19 chegou em todos eles. Então, a vacina tem que chegar. Cada município tem suas peculiaridades, em alguns as falhas operacionais são mais importantes, em outros o negacionismo antivacina pesa mais”, afirma Diego Xavier, pesquisador do Observatório Covid-19/Fiocruz.
Numa Nota Técnica de dezembro do Observatório da Covid-19/Fiocruz, portanto, antes do apagão de dados do Ministério da Saúde, a Região Norte já figurava como a menos vacinada do Brasil. A nota mostrava que só 16% dos municípios brasileiros tinham vacinação com esquema completo acima de 80%. No Sul do país, 30% dos municípios apresentam mais de 80% da população com esquema de vacinação completo, na região Sudeste 27,2%, no Centro-Oeste 11,8%, no Nordeste 2,7% dos municípios e na Região Norte apenas 1,1%.
Diego Xavier diz que desde então a situação pouco mudou e a tendência continua a mesma. São Paulo tem o maior percentual de população vacinada, 85% dos habitantes receberam a primeira dose, 80% a segunda e 35% foram imunizados com a terceira dose, segundo boletim da Fiocruz. Já o Amapá está no fim da fila. Tem o menor percentual de vacinação com a primeira dose (58,9%), só 42,9% com segunda dose e pífios 5,1%, com a terceira.
Xavier acrescenta que dezembro de 2021 e janeiro de 2022 foram os meses com a menor quantidade de doses enviadas pelo Ministério da Saúde, superando apenas os dois primeiros meses de imunização desde o início da campanha.
“Temos padrões de vacinação da Europa e da África dentro do Brasil”, diz Xavier.
A epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019), considera preponderantes para a criação de desertos vacinais a falta de planejamento do Ministério da Saúde, que não organizou a distribuição de imunizantes de acordo com as necessidades regionais, a falta de informação qualificada oficial para a população e o negacionismo do governo federal, que amplificou o movimento antivacina.
“A falta de comunicação oficial deixou muita gente apavorada, com um medo infundado que jamais existiu. E, pior, o Ministério da Saúde, ao abrir as portas para o movimento antivacina, empoderou o discurso negacionista e enfraqueceu a proteção da população contra a Covid-19. Isso é um estrago de impacto de longo prazo para a saúde pública. Não há boletins oficiais, não há meta. Ao contrário, há desinformação oficial”, salienta Domingues.