Meu encontro marcado com o velho Graça

Não sou crítico literário. Nem tenho formação nem paciência para sê-lo. Sou apenas um leitor comum que se deixa fisgar pelo encantamento de determinados textos. E, quando isso se dá, tenho a mania de me provocar para reencontros e novas descobertas com os mesmos textos. Muitas vezes, esses reencontros acontecem com longos intervalos de tempo. Foi assim, por exemplo, com “O velho e o mar”, de Hemingway. Havia lido duas vezes a obra. Na primeira, cursava a última série do ensino fundamental. Na segunda, cursava Letras na universidade. Na terceira, mais recente, já se haviam passado mais de cinquenta anos da primeira leitura. E foi justamente quando, mais fascinado ainda, eu mais pude mergulhar nos implícitos do texto e deles extrair uma enorme gama de sentidos que tinham me escapado nas duas leituras anteriores. Sobre esse reencontro com Hemingway, já falei em outro texto.

Meu reencontro, dessa vez, foi com “Angústia”, de Graciliano Ramos. Meu primeiro encontro com a vida mesquinha e modorrenta de Luís Silva, personagem que narra em primeira pessoa a história, tinha se dado, salvo engano, durante o quarto período do curso de Letras na Federal do Amazonas. Lembro-me bem de ter ficado impactado com aquela leitura. À época, entretanto, eu não sabia dizer a mim mesmo as razões pelas quais eu havia ficado impregnado com aquele texto de leitura nada convencional. Mas o mais curioso é que, desde então, juro que eu sabia: um novo encontro com aquele livro do velho Graça seria inevitável. E já estava agendado. Só não sabia para onde nem para quando.

De qualquer modo, aquele primeiro encontro com “Angústia” foi suficiente para eu me entregar ao prazer do estilo bem particular de Graciliano. Um extremo rigor na escolha das palavras, o que faz do texto uma peça enxuta, sem excessos, onde apenas o essencial é dito. Construções simples e diretas, sem aqueles malabarismos sintáticos que costumam afogar o leitor. Frases curtas e pontuais que dão contundência ao texto e obrigam o leitor a mastigar cada momento da narrativa. Nunca me esqueci dessas particularidades no estilo do velho Graça.

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 Mas havia muito mais a ser descoberto em “Angústia”. A construção do fluxo narrativo é de uma maestria extraordinária! Todos os acontecimentos evoluem a partir da mente fértil e escrava da ansiedade de Luís Silva. Essa projeção denuncia o estado de paranoia que sustenta a sua vida e exige a todo momento atenção redobrada do leitor. É preciso muito cuidado ao pisar em cada pedaço de chão do texto. Só assim é possível fazer a separação entre os acontecimentos reais, que são muito poucos, a intensa fertilidade imaginativa que domina a cabeça do narrador e as memórias que o perseguem. Na costura permanente dessas três ações, com maior intensidade para a segunda delas, Graciliano Ramos constrói “Angústia”, que considero a sua obra-prima.

 Aliás, pode haver gancho maior para se sentir fisgado por um texto do que o leitor abrir a primeira página de “Angústia” e se deparar com a densidade desse parágrafo de apenas dois períodos?

 “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.”            

Pois só agora eu me dou conta. O que assegurou meu reencontro com “Angústia” passa por uma breve história, mas por um longo tempo. O exemplar da primeira leitura e das primeiras descobertas em “Angústia” fora emprestado da biblioteca do velho Instituto de Ciências Humanas e Letras em 1975. Algum tempo depois, por razões que a própria razão só agora explica, comprei para ter em casa a 16ª edição do livro, publicada em 1976. De lá para cá já se foram 45 anos! Entre minhas tantas andanças e arribações, esse dito exemplar me acompanhou na travessia para residir cá em Portugal.  E só em tempos mais recentes, depois de ler uma biografia do velho Graça, acendeu-me a vontade de reler “Angústia”. Essa costura de acontecimentos não planejados explica, portanto, a estranha coincidência do nosso reencontro.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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