MIA COUTO: A ESCRITA QUE ENCANTA

Os livros são mesmo o maior dos antídotos contra a ignorância. E os nossos maiores aliados na busca do conhecimento e da compreensão, porque eles são sempre janelas que se abrem para o mundo. E não só para o mundo imediato que nos cerca, mas também para mundos outros, distantes, desconhecidos dos nossos olhos e de nossa convivência. Pois é conhecendo e compreendendo esses outros mundos que, dentre outras coisas, os livros nos possibilitam saber que, sendo o mundo tão plural, torna-se mais fácil conhecer o nosso próprio mundo.

Aprendi nesses dias, por exemplo, que em Moçambique é normal as pessoas conversarem em voz alta. Falar em voz baixa, demonstrando discrição, como costumamos fazer em nosso mundo, é descortesia, é falta de educação, pode insinuar que as pessoas estão tramando algo não desejável. De igual modo, aprendi também que nesse mesmo país é indelicado e revelador da ausência de bons modos bater à porta de alguém, como nós costumamos fazer com o nó dos dedos. Para se fazer anunciar, é praxe as pessoas chamarem os donos da casa ou baterem palmas antes mesmo de se aproximar da porta ou mesmo da varanda, se for o caso. E eu estou aqui a me referir a coisas simples do cotidiano, mas que não deixam de servir de parâmetros, como disse acima, para melhor conhecermos o nosso próprio mundo e aprendermos a respeitar o mundo dos outros. Deparei-me com estas e tantas outras descobertas lendo “O mapeador de ausências”, de Mia Couto.

Mas lembrar essas descobertas de natureza cultural é, na verdade, apenas pretexto para dizer outra vez do meu vivo encantamento com a escrita do poeta e escritor moçambicano. Nesse livro, Mia Couto cria uma trama ficcional simples para, em torno dela, empreender mergulhos profundos em sua memória passada, alguns salpicados por acontecimentos dolorosos e trágicos, mas de inevitável regresso, outros banhados por reencontros e descobertas que lhe enchem a alma de alegria e contentamento. E tudo isso se dá no ritmo de uma escrita pintada com cores tão delicadas e envolventes, que o leitor se esquece da sua condição de leitor e passa a viver cada passo da narrativa na mesma cadência de sentimentos e emoções do escritor-personagem em regresso a Beira, sua cidade natal, para um acerto de contas com um passado que resiste em se entregar à sua memória:

PUBLICIDADE

     “Tanto eu queria fugir das lembranças e tenho agora o leito coberto de passado”.

No mais, entregar-se à escrita sempre tão delicada de Mia Couto é navegar na certeza de que, com ele, o embelezamento poético da narrativa cabe na situação exata, sem esbanjamento, sem a banalização dos recursos metafóricos. E isso é arte para poucos.

PUBLICIDADE
(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.