‘Momento histórico’, diz Rosa Weber sobre tradução da Constituição para o Nheengatu
19 de julho de 2023
A presidente do STF, Rosa Weber, ao lado da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara (Fellipe Sampaio/SCO/STF)
Da Revista Cenarium*
MANAUS – A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, lançou nesta quarta-feira, 19, a primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena – o Nheengatu. A cerimônia foi realizada na maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), no município de São Gabriel da Cachoeira (distante 858 quilômetros de Manaus), no Amazonas. A ministra Cármen Lúcia, do STF, a presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargadora Nélia Caminha Jorge, e o corregedor-geral de Justiça do Amazonas, desembargador Jomar Saunders Fernandes, estavam entre as autoridades que participaram da cerimônia.
“Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico”, afirmou durante a solenidade. A ministra afirmou que não falaria como Rosa Weber, mas como Raminah Kanamari, nome indígena com o qual foi batizada no Vale do Javari (AM). E assim, destacou que a partir da Constituição Cidadã, os indígenas passaram a ter seus direitos reconhecidos e não serem mais “meros indivíduos tutelados”. Ela acrescentou que a tradução “é um gesto de valorização e respeito à cultura e à língua indígena”.
A Constituição em Nheengatu foi feita por um grupo de 15 indígenas bilíngues da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, em promoção ao marco da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) das Nações Unidas. A tradutora Dadá Baniwa disse que foi um trabalho “árduo e desafiador, mas também de muita alegria”.
À esquerda, a presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargadora Nélia Caminha Jorge; ao centro, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e Cármen Lúcia, ministra do STF (Chico Batata/TJAM)
Inclusão e resgate
A presidenta do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), Nélia Caminha Jorge, disse que a tradução é um passo significativo na promoção da inclusão e da igualdade, contribuindo para que as comunidades indígenas compreendam plenamente seus direitos e deveres como cidadãos brasileiros. “E mais do que isso, é uma afirmação do nosso compromisso em valorizar a diversidade cultural e garantir que nenhum grupo social seja deixado de lado”, disse a presidenta do TJAM. A desembargadora frisou a importância da iniciativa, ressaltando que “as barreiras linguísticas e culturais, muitas vezes, segregam e excluem”, e que o lançamento da Constituição Federal traduzida para o Nheengatu envia uma mensagem clara: a de que o sistema de Justiça está comprometido em garantir que todos os cidadãos tenham seus direitos e garantias fundamentais protegidos e respeitados, independentemente de sua língua materna ou origem cultural.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, enalteceu o trabalho feito pelos tradutores em tempo recorde de três semanas, considerando o resultado um “gesto de respeito às tradições indígenas”. Já a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, observou que, agora, o indígena poderá “conhecer seus direitos em sua própria língua” e que o desafio é incluir as outras línguas indígenas em iniciativas como essa.
Também acompanharam o lançamento da Constituição traduzida os professores especialistas na temática indígena José Ribamar Bessa Freire, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Marco Lucchesi, presidente da Biblioteca Nacional e integrante da Academia Brasileira de Letras. Bessa Freire disse que, hoje, o Supremo Tribunal retoma essa proposta de resgatar o valor das línguas indígenas representadas pelo Nheengatu, o Tupi Guarani moderno. E foi nesse idioma que o presidente da Biblioteca Nacional iniciou seu discurso, convocando todos aqueles a usarem sua voz em prol “da terra, da cultura e da justiça social”.
Indígena ergue a Constituição Federal traduzida para a língua Nheengatu (Chico Batata/TJAM)
Identidade de um povo
Ao citar dados do IBGE, a presidente do STF salientou que os cerca de 305 povos indígenas brasileiros são responsáveis pela preservação de 274 línguas. “A língua é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela é um componente central da cultura e da identidade de um povo”, afirmou. É a base de valores transmitidos de geração em geração de um povo “que expressa a visão de mundo, a criatividade e o vínculo coletivo entre uma comunidade”.
Rosa Weber destacou em seu discurso que foi com muita luta, sabedoria e resiliência que as línguas indígenas brasileiras conseguiram sobreviver. Assim, afirma que traduzir a Constituição para um idioma indígena é “um símbolo do nosso compromisso de garantir que todos os povos indígenas tenham acesso à Justiça e conhecimento das leis que regem nosso País” para que possam fortalecer participação na vida política, social, econômica e jurídica.
Observou que reconhecer que o Nheengatu seja utilizado oficialmente na leitura e interpretação da Constituição “é um passo em direção ao fortalecimento e à preservação de todas as demais línguas indígenas”.
Língua Geral Amazônica
Também chamada de Língua Geral Amazônica, o Nheengatu é a única língua descendente do Tupi antigo viva ainda hoje e que permite a comunicação entre comunidades de distintos povos espalhados em toda a região amazônica.
Rosa Weber finalizou seu discurso desejando que seja possível consagrar o que a Constituição brasileira almeja: “construir, juntos, um Brasil verdadeiramente inclusivo, onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o indispensável papel dos povos indígenas para a preservação do equilíbrio ambiental do planeta e, assim, da vida e do futuro de todos nós”.
A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber (Chico Batata/TJAM)
Conversa com tradutores e consultores
Antes do lançamento, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia se reuniram com as 12 lideranças indígenas que fizeram a tradução e os três consultores da obra.
A presidente do STF e do CNJ destacou que a intenção da tradução foi dar conhecimento aos povos originários sobre seus direitos. “Somente assim vamos fortalecer nossa unidade e compreender que somos todos Brasil”.
Já a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a tradução representa um “passo adiante” na história brasileira. “Espero que seja ensinada a Constituição em cada uma das línguas, que não fique em uma prateleira. Não se reivindica direito que não se conhece. Nosso objetivo é sermos uma sociedade livre, justa, solidária. A Constituição é de todos os brasileiros”.
Protagonistas
Na abertura da conversa, o desembargador Luís Geraldo Lanfredi, juiz auxiliar da Presidência do CNJ e que coordenou o projeto, destacou que os tradutores e consultores foram os protagonistas da tradução. “Trata-se de uma tradução inédita, a primeira do País e o passo inicial de muitas realizações como esta que irão acontecer.”
O indígena Edson Baré, que participou da tradução, destacou que a Constituição traduzida mostra que o STF e o Judiciário ouviram os gritos dos povos indígenas. “Vocês vieram comprovar: o Rio Negro está aqui, estamos vivos. Hoje, não lutamos com flecha, mas lutamos com dignidade pelo nosso território.”
Lucas Marubo, do povo Marubo, destacou que a tradução em Nheengatu abre precedente para que outros povos tenham os direitos traduzidos em suas línguas. “Momento histórico para os povos indígenas”.
O tradutor George Borari também ressaltou que o trabalho garante a dignidade dos povos originários.
Do povo Kanamari, Inory Kanamari também foi uma das tradutoras. Destacou que foi a primeira indígena de sua etnia na advocacia. “Estamos num País com diversidade imensa e não escuto nossas línguas nos espaços. A gente precisa fazer parte. Antes de sermos indígenas, somos pessoas com direito ao respeito.” Para ela, o texto traduzido reduz o preconceito contra os povos indígenas.
Também na coordenação do projeto, – representante do CNJ Natália Dino destacou que, com a tradução, o Supremo, como guardião da Constituição, ajuda a resgatar o papel relevante dos povos indígenas. “A Constituição é a garantia de direitos, de democracia, de pluralidade. Eu me sinto hoje participando de momento histórico, de reconhecimento, e que seja o primeiro desses vários momentos, porque a gente precisa trabalhar por uma Constituição que seja de todos os brasileiros.”
Joenia Wapichana, presidenta da Funai, encerrou a roda de conversa destacando que, como representante do Poder Executivo, atuaria para compartilhar o texto traduzido com as comunidades. “Eu quero compartilhar essa responsabilidade. No mundo indígena, somos coletividade. Não é meu, é nosso. Que a Constituição não seja só escrita, mas que seja exercida. Agora, estamos inspirados a fazer a gestão do nosso futuro.”
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