Nova Lei de Cotas: reparação e justiça social

A aprovação da nova Lei de Cotas aperfeiçoa uma das mais importantes políticas públicas de reparação histórica a estudantes negros, quilombolas, indígenas, de baixa renda e pessoas com deficiência para o ingresso em institutos e universidades federais. A assinatura da Lei 14.723/23, que atualiza a Lei de Cotas no ensino federal (superior e técnico), foi sancionada pelo presidente Lula no último dia 13 de novembro, em cerimônia no Palácio do Planalto. Desde a criação da legislação, em 2012, mais de 1,5 milhão de brasileiros ingressaram em um curso de graduação nas instituições públicas, sendo mais de 810 mil por intermédio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).

A Lei de Cotas integra as chamadas ações afirmativas, que são políticas sociais de combate a discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, para promover a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, entre outros. A legislação brasileira tem inspiração em experiências implementadas em outros países. Na década de 70, foram criadas bolsas de estudo para estudantes negros norte-americanos, pois o ensino superior não é gratuito nos Estados Unidos da América.

Esse movimento serviu de referência para que o sistema de cotas fosse implantado no Brasil. Em 2000, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou uma lei que reservava metade das vagas para candidatos da rede pública.

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No ano seguinte, a mesma Alerj determinou que 40% das vagas para estudantes de escolas públicas tinham que ser destinadas a autodeclarados negros e pardos. A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição pública federal a aprovar a política afirmativa em 2003. A reserva de vagas para cotistas raciais começou a ser adotada no vestibular do ano seguinte.

Em 2007, com a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o debate sobre as cotas raciais ganhou força nos conselhos universitários. A proposta de implementar cotas para estudantes de escolas públicas, com subcotas para negros, pardos e indígenas foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, que votou por unanimidade pela constitucionalidade das ações afirmativas. Assim, foi sancionada, em 2012, a Lei 12.711/12, que regulamentou o sistema de cotas em universidades e institutos federais de ensino.

A Lei de Cotas já previa que, quando completasse dez anos, o projeto passaria por uma revisão. Em 13 de novembro, a nova Lei de Cotas foi sancionada com mudanças que aperfeiçoam a norma anterior. Entre as principais mudanças estão: a reserva de 50% das vagas de ingresso nos cursos de graduação para estudantes com renda familiar igual ou menor a um salário mínimo; inclusão de quilombolas na reserva de vagas; políticas de inclusão em programas de pós-graduação de pretos, pardos, indígenas e quilombolas e pessoas com deficiência; e avaliação do programa a cada dez anos, com ciclos anuais de monitoramento.

A nova lei também inclui os cotistas na disputa pelas vagas de ampla concorrência e os coloca como prioridade na concessão de bolsas. Com a revisão aprovada, agora, os estudantes cotistas terão suas notas avaliadas primeiro para a ampla concorrência e somente depois para as cotas.

Dessa forma, ao optar pelo sistema de cotas, eles têm uma opção a mais para acessar a universidade, não um limitador do acesso. Agora, estudantes cotistas também terão acesso prioritário às bolsas de permanência e demais formas de auxílio estudantil. Os avanços são fruto do esforço conjunto de movimentos sociais e entidades de professores e estudantes no sentido de aperfeiçoar uma das mais importantes políticas públicas de reparação histórica.

Mesmo completando 10 anos de implementação e com sua revisão aprovada, a Lei de Cotas ainda encontra resistência. Os críticos à legislação utilizam, principalmente, dois argumentos contra a norma: as cotas ferem o princípio da meritocracia, colocando alguém com uma pontuação menor em vantagem em relação a alguém com uma pontuação maior; não se deveria pensar em cota, mas em melhorar o sistema público de educação básica, dando a todos as mesmas chances de ingressar na universidade. No entanto, é preciso considerar que seria impossível estabelecer um sistema meritocrático justo em um lugar onde não há igualdade de oportunidades entre os candidatos.

A despeito do investimento no ensino básico como alternativa às ações afirmativas, elas não se apresentam como solução definitiva para o acesso ao ensino superior público, no Brasil, por jovens de baixa renda, negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, mas uma primeira resolução para a questão.

A Lei de Cotas deve estar acompanhada de investimentos na educação básica pública, para que, futuramente, com uma educação de qualidade, as cotas não sejam mais necessárias. Felizmente, a posição majoritária na sociedade brasileira é que a exclusão social e o racismo nos levam a uma necessidade de implantar medidas que promovam a igualdade.

A manutenção e ampliação da Lei de Cotas também tem como base seus resultados incontestes na última década. O IBGE aponta que, entre 2010 e 2019, houve aumento de quase 400% no número de alunos pretos e pardos nas instituições de ensino do Brasil.

O Censo da Educação Superior do Inep diz que, em 2017, a quantidade de estudantes indígenas que ingressaram em instituições de ensino foi nove vezes maior que em 2010. A UnB realizou levantamento, em 2019, que apresentou que a quantidade de pretos, pardos e indígenas correspondia a 48% do total de estudantes da universidade (3.727 alunos pretos, 15.225 pardos e 203 indígenas).

A chegada dos cotistas no ensino superior público não resultou em abandono dos cursos ou desempenho inferior em relação aos demais estudantes. O Censo do Ensino Superior de 2022 indicou que a taxa de permanência e de conclusão do curso entre cotistas chega a ser 10% maior do que a taxa entre estudantes da ampla concorrência.

Estudantes que ingressam pelas cotas mostram desempenho acadêmico igual ou superior ao dos discentes que ingressaram pelo sistema de ampla concorrência. De acordo com o Ministério da Igualdade Racial, até dezembro de 2021, mais da metade dos programas de pós-graduação das universidades públicas tinha algum tipo de ação afirmativa no processo seletivo.

A composição demográfica brasileira e da Amazônia são indicadores da importância da política de cotas. O País possui, hoje, uma população composta por 42,8% de brancos, 10,6% de pretos, 0,83% de indígenas e 45,40% de pardos, ou seja, os autodeclarados pretos, pardos e indígenas representam mais da metade dos brasileiros, segundo o Censo 2022 do IBGE. Em se tratando de Amazônia, a região possui o maior quantitativo de pessoas pardas do Brasil, 70,1%; no Amazonas, o número chega a 80,1%.

A Região Norte concentrava 44,48% da população indígena do País, em 2022, e Manaus tem o maior número de pessoas indígenas (490,9 mil). O IBGE revela também que 32,11% dos quilombos estão na região amazônica.

Os dados demográficos nos levam a outro aspecto marcante da sociedade brasileira: a desigualdade social. No Brasil, a desigualdade social está intimamente ligada à desigualdade racial.  Segundo o IBGE, as pessoas pretas ou pardas são as que mais sofrem no País com a falta de oportunidades e a má distribuição de renda.

Embora representem a maior parte da população (55,8%) e da força de trabalho brasileira (54,9%), apenas 29,9% destas pessoas ocupavam os cargos de gerência. Diante dessa realidade, abrir as portas das universidades e institutos federais para jovens de baixa renda, negros, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência significa tanto uma reparação histórica quanto a construção de uma sociedade mais justa.

*Allan Soljenítsin Barreto Rodrigues é jornalista, escritor, professor do curso de Jornalismo da Ufam, mestre e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Cultura e Amazônia (Trokano)
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(*)Allan Soljenítsin Barreto Rodrigues – jornalistas, escritor, professor do Curso de Jornalismo da UFAM, mestre e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e líder do Grupo de Pesquis em Comunicação, Cultura e Amazônia (Trokano).

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