O aposentado de Casablanca

O sol não havia dado ainda o inteiro ar de sua graça. Apenas alguns tímidos e vacilantes raios de luz se misturavam à pálida escuridão que restava da madrugada e ameaçavam transpor o tecido da cortina vermelha que descia do teto sobre a janela do quarto. Aos primeiros acordes de ‘As times goes by’, na voz inconfundível de Dooley Wilson, deu um salto carpado e se sentou na beira da cama. Mas não se levantou de imediato. Como nas manhãs anteriores, falou baixinho para si mesmo, imitando a voz de Rick, o personagem de Humphrey Bogart no filme Casablanca: “Toque aquela, Sam”. Como também se tornara hábito, manteve os olhos cerrados por algum tempo e se deixou embalar por sua música preferida. Tão preferida, que a havia escolhido como seu despertador diário no celular. Considerava aquela a melhor forma de se reencontrar com um novo dia para o enfrentamento das atividades no trabalho. Amava trabalhar.

Era ainda muito jovem. Talvez tivesse uns quinze ou dezesseis anos quando entrou na sala de cinema do seu bairro e assistiu, pela primeira vez, ao Casablanca. Aquele encontro casual foi suficiente para se apaixonar por Ingrid Bergman e tornar inseparável a música do filme da beleza da atriz sueca. O resto veio a reboque. Depois daquele dia, onde quer que o filme estivesse sendo exibido na cidade, lá estava ele na sala escura do cinema, sempre com a sensação de estar se encontrando pela primeira vez com a mulher dos seus sonhos e ouvindo pela primeira vez a música de sua vida.

Anos depois, já na época do videocassete, talvez tenha sido o primeiro cliente da loja de departamentos a levar Ingrid Bergman para casa e perder as contas das vezes em que, pasmado e sem um pingo de tédio, assistiu ao filme. Com a chegada do DVD não foi diferente. O seu exemplar em videocassete tornou-se relíquia e ele redobrou sua paixão, pois podia agora ver com mais qualidade a beleza de Ingrid e ouvir sem ruídos ‘As times goes by’. Pouco tempo depois, seus exemplares em videocassete e DVD se tornaram relíquias e ele pôde desfrutar de toda definição possível da imagem de sua amada estrela e de toda a clareza na voz de Dooley Wilson com a nova tecnologia do Blu-Ray.

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Ao final da música, abriu os olhos para desativar o alarme do celular e tomou um susto. O tempo tinha dado um salto enquanto ele viajava nas nuvens com ‘As times goes by’. Tinha que se apressar, para não chegar atrasado ao trabalho. Aliás, era um de seus maiores orgulhos: trabalhava há 47 anos no mesmo emprego e nunca, nunca mesmo, tinha faltado ou mesmo se atrasado. Daí, não pensou duas vezes. Desfez-se do pijama, correu para o banheiro, escovou os dentes, pôs-se debaixo do chuveiro, voltou para o quarto, secando-se das últimas gotas ainda no trajeto, vestiu a roupa com a rapidez que o tempo exigia, borrifou um pouco de perfume nos dois pulsos, esfregou um contra o outro, umedeceu o dedo indicador, levou o cheiro para trás de cada uma das orelhas, calçou meias e sapatos, ajustou a gravata, passou na cozinha, viu que a mesa estava abundantemente arrumada, como se fosse uma data especial, viu que a mulher lhe dirigiu os braços abertos e um sorriso incomuns para uma manhã de segunda-feira, deu-lhe um beijo de despedida no cangote, não lhe deu tempo para falar, deixou-a com os braços no ar, sem tempo para que ela cumprisse o abraço planejado, disse que não tinha tempo para o café, escafedeu-se em direção à porta da casa, no caminho pegou a chave do carro sobre a mesinha de centro da sala, acionou a porta da garagem, entrou esbaforido no veículo, deu na partida, engatou a primeira marcha, começou a aliviar o pé na embreagem, apertou levemente o acelerador, viu e ouviu as batidas fortes da mão da mulher no vidro da janela do motorista, pisou assustado no freio, o motor deu um tranco e estancou, baixou o vidro, estava irritado, não podia chegar atrasado, e a voz da mulher finalmente pôde desabrochar, invadiu o carro e os ouvidos dele:

“Não tens trabalho, meu bem, disse-lhe ela. Estás aposentado desde sexta-feira. Subitamente desperto do estado de transe em que se encontrava, seu corpo desfaleceu por inteiro na poltrona do carro e sua cabeça tombou para o lado esquerdo, como se tivesse acabado de ser atingida por uma pancada de peso incalculável. Ela abriu a porta do carro, mas ele continuou inerte, com as mãos grudadas ao volante e com os olhos vidrados e esbugalhados presos ao infinito e além. Ela o sacudiu pelo braço esquerdo, praticamente o arrancou do carro e conseguiu, a duras penas, arrastá-lo até a cozinha, onde a mesa estava posta e bela para um verdadeiro baquete matinal em comemoração ao primeiro dia de aposentadoria dele. Mas ele nada comeu nem nada bebeu no café da manhã nem no restante do dia. Passou o dia inteiro desfalecido na sala, entregue ao conforto de sua poltrona preferida, de olho na TV ligada, mas sem nada ver. A expressão em seu rosto era o retrato mais bem desenhado e completo do desânimo e da infinita tristeza.

À noitinha daquele mesmo dia, já sem remédio caseiro para trazer o marido de volta à vida, ela ligou para o médico da família, que não demorou muito tempo a chegar com sua maletinha preta. Depois dela ter-lhe contado, ainda à porta, tintim-por-tintim do corrido, o médico procedeu aos exames clínicos de praxe e não conseguiu arrancar do novo aposentado senão alguns ‘sins’ e ‘nãos’. O caso é grave, sussurrou o médico aos ouvidos da mulher.

Em seguida, ela conduziu o doutor até a cozinha, onde a mesa continuava posta, e, suportando o peso do mundo nos ombros, ofereceu-lhe o café da manhã, que agora já era do jantar. O doutor aceitou e provou de um tudo. Depois, ela acendeu as duas velinhas com os números 4 e 7 cravados no centro de um bolo e em redor das quais se via escrito, em cores branca e azul, ‘Parabéns pela aposentadoria, Antenor’.

Por fim, ela criou coragem e, recalcitrante, mas com a voz embargada, perguntou ao médico sobre um possível tratamento. O médico sinalizou com a mão direita, pedindo um tempo enquanto terminava de mastigar um pedaço do bolo do Antenor, deu um gole na xícara de café preto que ela havia servido, pigarreou duas vezes e cravou:

Infelizmente o Antenor não se preparou para a aposentadoria. Ele não consegue ressignificar-se para uma nova vida: a vida de aposentado. Terá, portanto, que se submeter a um tratamento sério, começando do zero, para se livrar desse estado de dependência do trabalho a que foi levado durante os últimos 47 anos.

A mulher arriscou:

– Tem cura, doutor?

– Só o tempo dirá.

Enquanto isso, na sala, o corpo de Antenor continua recolhido à mesma poltrona desde a manhã daquele dia, ainda com a mesma roupa de trabalho, ainda com os braços estirados sobre os braços da poltrona, ainda com os olhos fixados no infinito. De repente, a voz de Dooley Wilson escapa do celular, que está no bolso interno do paletó de Antenor, e, num crescendo contínuo, espalha pela sala os primeiros acordes de ‘As times goes by’.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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