O direito de Filó e dos animais do Cetas

Sei que há muita gente que considera que animais não sentem dor, que não sentem amor entre eles ou devoção a nós, humanos. Mas observo, com satisfação, que cresce uma onda enorme contrária a este pensamento no mundo, especialmente nos países onde há mais discernimento intelectual. Difícil viajar para qualquer País do primeiro mundo em que não haja um restaurante vegetariano a cada esquina, por exemplo. Difícil, também, alguém que não tenha assistido a “Cowspiracy” sem que tenha ao menos diminuído o consumo de carne, mas essa é outra história (ou não).

Difícil, também, não encontrar pessoas se importando com o sofrimento e dos direitos de Filó ao fazer uma busca pelos comentários nas redes sociais do carinhoso Agenor, da “doida” e corajosa deputada Joana D´Arc, da bem intencionada, mas muitas vezes equivocada Luisa Mell, ou do deputado federal Fred Costa (mineiro, porque, pasmem, nenhum parlamentar federal do Amazonas sai em defesa do meio ambiente, o que incluem os animais silvestres, só tem olhos para a ZFM porque humano vota, né?). Isso acalenta meu coração, que desde que cheguei nesse planeta, tenho a mais absoluta certeza que os animais tem tanto (ou mais) direito a viver aqui do que a gente. E a gente tem o dever de buscar viver em harmonia com eles, se não um dever humanista, que seja cristão.

A peça de oito páginas do juiz federal Márcio André Lopes Cavalcante é um primor de empatia e compaixão com os animais. A decisão que permitiu Agenor ser o fiel depositário da capivarinha simpática Filó é toda alinhavada com cuidado com o relatório dos valentes advogados, veterinários e biólogos incansáveis da equipe da deputada Joana D´Arc que entraram na sede do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) que, olhem a ironia, fica no bairro Distrito Industrial, onde ficam as fábricas do Polo Industrial de Manaus.

PUBLICIDADE

Um trecho do texto do juiz diz tudo, absolutamente, tudo: “Pelos diversos vídeos divulgados, constata-se que o autor, morador da zona rural de um pequeno município do interior do Estado do Amazonas, vive em perfeita e respeitosa simbiose com a floresta e com os animais ali existentes. Não há muros ou cercas que separam o casebre de madeira do autor em relação aos limites da floresta. Os animais circundam a casa e andam livremente em direção à residência ou no rumo do interior da mata. Não há animais de estimação no quintal da casa do autor porque o seu quintal é a própria Floresta Amazônica. Percebe-se, portanto, que não é a Filó que mora na casa de Agenor. É o autor que vive na floresta, como ocorre com outros milhares de ribeirinhos da Amazônia, realidade muito difícil de ser imaginada por moradores de outras localidades urbanas do Brasil.

É isso. Qualquer pessoa que diga que o que Agenor mostrava em suas redes sociais “estimulava” a domesticação de animais silvestres não tem noção alguma de como vivem os ribeirinhos no interior do meu Amazonas, ou melhor, da Amazônia. Ele mostrou seu dia a dia, sem maldade, sem malícia. Nunca lucrou com isso, mas conseguiu bater e ultrapassar a meta na vaquinha que fez para pagar a multa absurda do Ibama. Espero que use bem o dinheiro, especialmente para seus estudos.

Usei esse mesmo tema, essa simbiose homem-bicho do interior para meu segundo livro infantil, “José e o Mistério dos Bichos da Amazônia” (Editora Jandaíra). Sem dar spoiler e já dando, o sofrimento de José se dá quando fazem com ele exatamente o que fizeram com Agenor e continuam fazendo com animais pelo mundo, tirar do habitat para trancafiar em zoos. Eu tinha e tenho o maior prazer em seguir redes sociais como o de Agenor e outros ribeirinhos e indígenas, mostrando o dia a dia em seus paraísos de mata, bichos e rios, muito mais prazer do que assistir influencers que estimulam patéticas mesmices consumistas.

Sei que a ideia do Ibama era tentar reintegrar o animal em bando, e tenho certeza que ela não iria se adaptar, iria morrer de tristeza, certeza. Mas, a entrada abrupta da deputada Joana no Cetas mostrou o caos que está o local onde a capivarinha iria ficar, até sabe Deus quando, ser reintegrada à natureza (repito: ela já vivia em seu habitat, é inegável). Tirada da mata para uma gaiola.

O novo problema que a deputada revelou não é tão novo: o Ibama está sucateado há tempos, piorando gravemente nos últimos quatro anos em que a prioridade foi liberar a mata para madeireiros e traficantes de animais. No Cetas, há seres vivos sofrendo com isso, em jaulas sujas, diminutas, lotadas. O laudo dos quatro médicos veterinários (Guilherme Divina, Alessandra Ossuosky Chíxaro, Vitória de Souza e Humberto Nunes Leão e do biólogo Rodrigo Moraes Hidalgo) é deprimente, sobre as condições do Cetas.

No interior do Cetas constatou-se que não se encontrava em boas condições de higiene, sendo perceptível “um forte odor e acúmulo de dejetos”. Ressalta-se que todos os relatos foram comprovados através de registros fotográficos, inclusos em anexo para o juiz. “Quanto ao recinto que o animal estava alojado, verificou-se que não atende a normativa 07 do IBAMA, de 30 de abril de 2015, com referência a página 62, anexo IV, capítulo VII, ao qual rege que o recinto adequado para a espécie deve atender o mínimo de área de 70m², tendo ainda, 20% do mesmo de lâmina de água e que precisa de solo rasteiro e vegetação similar ao habitat natural.”

Ainda segundo o texto, “não é possível determinar a frequência de alimentação, tendo em vista que a equipe participou da perícia aguardou o dia inteiro na repartição e não houve reposição de alimento para o animal. Não há cardápio ou plano nutrição para o animal, assim como, as condições das geladeiras e da cozinha do Cetas encontram-se em estado precário. Não foi reposta a água, caracterizando ausência de água fresca. As condições de higiene do bebedouro estavam inadequadas, tudo conforme fotografias em anexo. Conclui-se, portanto, que o indicador nutricional foi considerado INADEQUADO.”

E o mais triste: foi constatado para TODOS os animais do local esse estado de precariedade. Estes animais são resgatados pelo Ibama de maus tratos ou tráfico e é uma espécie de alojamento de passagem até que consigam readaptar o animal em seu habitat. Ou seja, o animal chega ali sofrido e sofre ainda mais. O texto do relatório dos veterinários e biólogos ainda descreve: “Os quelônios não possuem área úmida que cubra totalmente a sua carapaça, há mistura de espécies de aves no mesmo ambiente, a cerca limitante do órgão é precária e não impede a invasão de animais domésticos em situação de rua. Foram encontrados medicamentos e suplementos vencidos, além de outras condições precárias, que necessitam de investigação a fundo.”

Vocês já ouviram falar na frase “Deus escreve certo por linhas tortas”? Pois a entrada injusta de Filó nos Cetas revelou essa triste situação do órgão necessário e importante num Estado como o Amazonas, rota de tráfico de animais silvestres e onde ainda há muita ignorância de pessoas que prendem macacos pela perna, cortam asas de arara e tratam como animais domésticos (o que não é o caso de Agenor). Espero, de todo o coração, que a deputada Joana não arrede mão de buscar ajuda para o Cetas, também frisada no fim da sentença do juiz, que encaminha ao Ministério Público Federal em busca de providências

“Considerando que Filó será resgatada, mas existem outros animais que ainda se encontram no Cetas, determino que sejam encaminhadas cópias dos autos, em especial do laudo, ao Ministério Público Federal para que sejam tomadas as providências que o caso requer.” E que nós, cidadãos, possamos aprender a cobrar das autoridades o cuidado necessário, também com o intuito de sobrevivência da própria humanidade, com os animais que não falam e não votam, sejam os domésticos ou silvestres.

Liege Albuquerque é jornalista pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP). Foi repórter e editora em veículos como Folha de S. Paulo, Veja (SP), O Globo (BSB), A Crítica e Diário do Amazonas (AM) e O Estado de S. Paulo (SP e BSB). Trabalhou ainda por nove anos como correspondente do jornal ‘O Estado de S. Paulo’, no Amazonas. Atualmente, é professora de Jornalismo na Faculdade Metropolitana de Manaus (Fametro) e redatora na Câmara Municipal de Manaus (CMM).

PUBLICIDADE
(*)Jornalista e mestre em Ciências Políticas

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.