O DOCE ADEUS AO INTERNATO

Aquela foi a mais longa das noites de minha infância. Diferente dos outros dias, em que o cansaço me nocauteava tão logo a cabeça sentia o macio do travesseiro de fronha branca, era como se as atividades escolares e as estripulias da manhã e da tarde estivessem apenas começando. A ansiedade, de tão grande, não deu nenhuma chance para eu me curvar ao silêncio escuro do dormitório. O sono logo se tornou voto vencido.

O dormitório ficava no primeiro andar. Era um salão grande, atravessava toda a extensão retangular do prédio principal. As paredes laterais, altas e pintadas de um amarelo bem suave, quase branco, abrigavam uma fileira de janelas duplas com cortinas brancas rendadas que, escancaradas todos os dias às seis da manhã, tornavam o ambiente bem arejado. Do centro do teto, em igual distância uns dos outros, pendiam fios compridos que seguravam na ponta um lustre simples de uma única lâmpada que irradiava uma luz tímida e cansada, a combinar com a cor das paredes, e incapaz de iluminar o ambiente a contento. As estreitas camas de ferro, pintadas de branco neve, eram simetricamente arrumadas nas duas laterais do dormitório, quase a perder de vista. Ao centro, entre as fileiras de camas, um longo corredor que desaguava nos banheiros e vestuários.

     O ritual diário que antecedia o apagar das luzes do dormitório não foi diferente dos outros dias. Depois do corre-corre e da algazarra, para dar conta de escovar os dentes e vestir o pijama branco de listras finas e azuis, cada um de nós se perfilou ao lado da cabeceira da cama, como soldados de prontidão. A inspetora da noite, dona Maricélia, entoou a oração de sempre. Em decorrência do cansaço do dia, a oração entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Então, aguardamos, como sempre, ansiosos pelo final, quando ela disse ‘amém’ e nossas quase sessenta vozes, exalando bocejo e sono, repetimos em uníssono, de forma automática e preguiçosa, já de olho no aconchego da cama. Depois, foi apenas o tempo necessário para nos aninharmos no lençol branco de bolinhas azuis e ouvirmos, ao longe, o estalido seco do interruptor. O dormitório foi invadido pela escuridão, e só depois de alguns segundos, com os olhos já acostumados ao ambiente, foi possível vislumbrar uma pequena e pálida réstia de luz que vinha do fim do corredor em frente aos banheiros.

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Com o dormitório envolvido na penumbra do silêncio daquela noite de sexta-feira e o sono distante de minha vontade, fui invadido por pedaços de lembranças do internato que me acompanhariam pela vida afora.

Zenaldo tinha sido o amigo de primeira hora. Moreno, franzino, com os cabelos encaracolados, olhos tristes, minhas primeiras palavras no meu primeiro dia de internato foram com ele. Tínhamos em comum, naquela terrível segunda-feira de um ano atrás, a inconsolável sensação de termos sido injustamente abandonados naquele lugar de crianças esquisitas. E logo fizemos um silencioso pacto de solidariedade e proteção mútua, depois de trocarmos palavras sobre as limitações físicas que nos levaram a ser aceitos no internato.

Zenaldo suspendeu a camisa e me mostrou algo assustador e, ao mesmo tempo, fascinante. O centro de sua barriga, logo abaixo do peito, era protegido apenas por uma membrana fina, delicada e transparente que permitia visualizar as entranhas de alguns de seus órgãos, inclusive os movimentos contínuos do seu coração. Fiquei chocado quando vi aquilo. Passei a ser uma espécie de guarda-costas de Zenaldo nas poucas brincadeiras de que ele participava. Com ele, aprendi que a solidariedade é a primeira de todas as virtudes. Depois do internato, nunca tive oportunidade de rever aquele amigo.

A noite se estendia preguiçosa, enquanto a ansiedade pelo amanhecer não me deixava pregar os olhos. Deitado em minha cama e com os olhos vidrados no teto, eu dava conta de todo e qualquer ruído que o silêncio da noite deixava transparecer. O ronco do sono justo e tranquilo de alguns colegas, o rangido das ripas dos estrados das camas reclamando de qualquer movimento, o grunhido da algazarra dos ratos desfilando em velocidade no forro de madeira do dormitório, o barulho suave dos galhos da enorme mangueira embalados pelo vento a roçar o vidro da janela próxima à cabeceira da minha cama.  Até que o cansaço e o sono me levaram à completa exaustão.

De manhã, atravessei o salão principal do prédio, o mesmo onde há um ano eu tinha me agarrado à cintura de Mãe num inútil esforço para, entre choros e lágrimas, não me separar dela. Caminhava agora em passos lentos e suaves, como se meus pés pedissem desculpas à cerâmica com desenhos retangulares que formava o piso do salão. Mas meu coração continuava a bater forte como um tambor, o que me obrigava a respirar de modo profundo e ofegante.

Quando abri a porta que dava acesso à recepção do prédio, Mãe, estava sentada em um dos bancos laterais. Não contei dúvida. Larguei a mala no chão, enchi-me da mais plena alegria e saí de braços abertos em desabalada carreira ao encontro dela. Armada de um largo sorriso carregado de afeto, Mãe levantou-se de imediato e, também, foi ao meu encontro de braços abertos. Ficamos os dois ali abraçados, como se o tempo tivesse parado, como se tivéssemos nos metamorfoseado em uma só vida, em um só coração, em uma só ternura, em um único amor. Descobri, então, que a ansiedade minha e de Mãe era, também, uma só.

Mas antes de chegarmos ao portão, ouvi de longe, em meio ao ruído do vento nos galhos das árvores e aos cantos embaralhados dos passarinhos, uma voz conhecida gritando insistentemente pelo meu nome. Sem me desgrudar de Mãe, voltei o meu rosto e lá estava o meu amigo Zenaldo vindo às pressas em nossa direção. Olhei para Mãe com um sorriso que, naquele exato momento, lhe fez perceber a razão da minha ponta de tristeza. Desgrudei-me de Mãe e abracei demoradamente e com emoção meu melhor amigo. Foi último abraço. Foi a última vez que o vi.

     Depois, já tendo alcançado a parte externa do portão principal, fiz Mãe se voltar comigo em direção ao prédio do internato, segurei-lhe a mão esquerda e, titubeando, li com o orgulho de quem está começando a descobrir o extraordinário mundo das palavras, no alto da fachada do prédio, em letras grafadas em alto relevo: Instituto Montessoriano. Mãe apertou-me contra o seu corpo. Beijou demoradamente a minha cabeça. E seguimos em direção ao ponto de ônibus mais próximo.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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