Promessa cumprida. Desprezo mortal

A crise humanitária — mortes, fome, malária e moléstias — que ceifou vida de pelo menos mais de 500 crianças famélicas, sem contar os adultos e idosos do povo Yanomami, em Roraima, revela que o capitão Jair Messias Bolsonaro é um homem de palavra. As imagens de crianças e adultos esquálidos dominaram o noticiário nacional e ilustraram as manchetes dos veículos de comunicação internacionais. Vergonha! O ex-presidente e sua equipe ignoraram os mais de 60 pedidos de socorro do povo Yanomami. Hoje, Bolsonaro é alvo de uma investigação por tentativa de genocídio ou etnocídio, pela Polícia Federal, a pedido do ministro da Justiça, Flávio Dino.

Desde que chegou ao Congresso Nacional, em 1991, com o voto dos eleitores do Rio de Janeiro, Bolsonaro se tornou um dos mais desilustre deputado federal. Uma das primeiras nefastas iniciativas de sua autoria foi a de propor um decreto legislativo com o intuito de anular a decisão do então presidente Fernando Collor de autorizar a demarcação da Terra Indígena Yanomami, que ocupa 9,4 milhões de hectares entre Roraima e Amazonas até a fronteira com a Venezuela, País vizinho, onde os Yanomami têm área demarcada.

À época, ele argumentava que a cavalaria norte-americana era muito mais eficiente do que a brasileira, pois havia exterminado os indígenas dos Estados Unidos. Mais claro impossível. O deputado, que chegou ao Congresso após sair pelas portas dos fundos do Exército, era inimigo declarado dos povos originários e revestido de preconceito, desumanidade e de ignorância sobre a importância dos indígenas como guardiões do patrimônio natural do Brasil. Acrescente-se: meio ambiente, para ele, também é algo desprezível.

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Na campanha eleitoral de 2018, o desilustre deputado avisou que, se eleito presidente da República, não demarcaria um centímetro de terras indígenas e quilombolas. Para ele, a Amazônia, cuja maior riqueza é o patrimônio natural, deveria ser explorada pela mineração, e as matas substituídas pela agropecuária, a fim de eliminar a pobreza. Desenvolvimento sustentável é a expressão que nunca coube no limitado e chulo vocabulário do então presidente.

Ele cumpriu à risca sua promessa, a partir de 2019, quando tomou o assento do Palácio do Planalto. As terras indígenas, de forma mais agressiva a Yanomami, foram franqueadas à invasão dos garimpeiros e de outros predadores inimigos dos povos originários e tradicionais. Madeireiros fizeram uma farra em grandes áreas amazônicas. Nos últimos quatro anos, as queimadas e o desmatamento bateram recordes na Amazônia Legal, no cerrado, na Mata Atlântica. Incêndios criminosos chegaram ao Pantanal mato-grossense.

Em meados de 1980, milhares de garimpeiros, liderados pelo mineiro de Governador Valadares, José Altino Machado, invadiram a Terra Yanomami. Não foi a primeira vez. Ele havia comandado outras invasões desde a década de 1970, e sentia-se à vontade devido à conivência do poder público. Logo depois da demarcação, sob o comando do então diretor-geral da Polícia Federal Romeu Tuma, e com apoio das Forças Armadas, cerca de 40 mil garimpeiros foram banidos do território Yanomami. Acompanhei uma das operações, na Serra da Surucucu, em Roraima. Os pilotos de Aeronáutica se mostravam incansáveis. Sobrevoavam, constantemente, a região e identificavam onde os garimpeiros estavam agindo.

No início, as pistas de pouso, abertas pelos garimpeiros, foram dinamitadas pelas equipes da Polícia Federal. Mas a ação do governo não se mostrou eficaz. Dinamitava uma pista e, logo, os garimpeiros abriam outras. Assim, com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB), o espaço aéreo foi fechado às aeronaves não comerciais. Essa foi uma das táticas usadas pela Polícia Federal para impedir a chegada de alimentos e combustíveis aos garimpeiros em terra, que eram lançados dos aviões para prover os invasores dos insumos necessários à permanência na floresta. Os invasores não suportaram a pressão e fugiram da Terra Yanomami. Foi só uma trégua no processo de desintrusão da terra indígena. A cobiça dos garimpeiros nunca deixou de existir.

José Altino Machado, hoje com 79 anos, era dono de uma frota de aeronaves para transporte de garimpeiros. Na época, entrevistei Zé Altino, em um hotel no centro de Boa Vista. Ele estava acompanhado do irmão, um homem estranho, alto, bem magro, com vestes pretas, com um sobretudo cumprido até abaixo do joelho, que se mantinha em pé ao lado de Altino, com olhar fixo e intimidador nos jornalistas. Sob o casaco, sem desfaçatez, percebia-se que ele carregava mais de uma arma de fogo.

Altino garantiu que, passados alguns meses, os garimpeiros que haviam deixado o território do povo Yanomami, em busca do ouro, da cassiterita e outros minérios, voltariam. No ano passado (2021), em entrevista ao site Repórter Brasil, ele repetiu, com convicção, a mesma declaração que ouvi em meados dos anos 1980: “Pode até tirar [os garimpeiros], mas daqui seis ou sete meses volta todo mundo”. Dessa vez, não haveria, como não houve, uma reação do poder público. Dessa vez, tinha certeza que os invasores não seriam importunados.

Próximo ao então vice-presidente Hamilton Mourão, Altino estava convicto de que os garimpeiros tinham sinal verde, uma vez que o ex-presidente Bolsonaro havia autorizado a mineração ilegal em terras indígenas. Além disso, por perto estavam integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa de São Paulo, que financia as invasões de garimpeiros para a lavagem do dinheiro obtido pelas ações criminosas, como tráfico de drogas e armas. O PCC também é suspeito de ter custeado as mais de 30 balsas que, no ano passado, foram destruídas pela Polícia Federal, por mineração ilegal no Rio Madeira.

E, assim, aconteceu. Hoje, os corpos famélicos dos pequeninos Yanomami mostram o escárnio do governo passado com os povos indígenas. Para aqueles que governaram o País, os povos originários não são seres humanos, não são brasileiros e, portanto, merecedores do mais infame desrespeito. Aos que estavam no poder, indígenas, quilombolas, negros, homossexuais e até mulheres são pessoas desprezíveis.

A tática do passado para retirar os invasores que estão nas terras Yanomami poderia ser aplicada hoje. Ainda que possa levar a um resultado positivo, não será suficiente. É preciso manter um serviço permanente de vigilância dos territórios e assistência aos povos originários; punir com rigor os invasores; e estrangular, financeiramente, os líderes dos bandos de garimpeiros que merecem, também, privação de liberdade pelos crimes ambientais praticados. Sem asfixia financeira e livres, eles se reorganizam e repetem as invasões, como têm feito há décadas. Em Boa Vista, conheci a rua do Ouro, por onde não circulavam fiscais e muito menos a polícia para averiguar as negociatas que lá ocorriam — terra sem lei.

As providências em defesa dos indígenas não podem ser restritas ao povo Yanomami. Devem ser estendidas aos demais povos que vivem sob a opressão, a violência e o desrespeito dos não indígenas. São comunidades invisíveis aos governos municipais e estaduais, sem assistência médica, sem escolas adequadas, com seus territórios invadidos por interesses vis e incompatíveis com o direito à vida. Vidas indígenas importam e são imprescindíveis.

(*) Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas há 62 anos em Brasília, jornalista, há 41 anos, trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e, hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.

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(*)Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas há 62 anos em Brasília, jornalista, há 41 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e, hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.

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