‘Reféns do Carvão’: exploração de trabalhadores em carvoarias na Amazônia
Por: Ívina Garcia
23 de maio de 2023
Ricardo Oliveira e Ívina Garcia – Da Revista Cenarium
MANAUS (AM) – Jornadas longas de trabalho, alojamentos precários, falta de materiais de segurança e de instalações sanitárias e baixa remuneração estão na lista de irregularidades flagradas em ambientes nos quais, até hoje, perdura a exploração do trabalho, conhecida como “escravidão contemporânea”. No mês em que é celebrado o Dia do Trabalhador, no dia 1º de maio, a REVISTA CENARIUM denuncia, em uma série de reportagens, situações de trabalho análogo à escravidão na Amazônia a partir das histórias de carvoeiros de Roraima. Eles representam a ponta de um iceberg na região, onde 27,9 mil trabalhadores escravizados foram resgatados nos últimos 27 anos, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT).

A reportagem esteve em carvoarias nos municípios de Boa Vista e Rorainópolis, no Estado de Roraima, entre janeiro e março de 2023, e identificou trabalhadores em situações degradantes, sem registros empregatícios, com jornadas de trabalho de até 14 horas diárias, em locais de estrutura inadequada, com ausência de itens essenciais, como água potável e materiais de segurança; baixa remuneração, que pode chegar a R$ 10 ou R$ 100, por dia; e exposição a condições insalubres, com altas temperaturas, fumaça e sujeira. O cenário encontrado pela reportagem é similar aos de alvos de operações do MPT em diversos Estados da Amazônia Legal, que já resgataram milhares de trabalhadores escravizados, ao longo das últimas décadas.
Magros, vestindo camisetas, bermudas e calçando chinelos, os carvoeiros encontrados pela reportagem passam os dias cobertos da negra fuligem de carvão, que pinta suas peles, na maioria, de pardos. E, sem oportunidades melhores de garantir o sustento, comem e bebem o que dá e tentam sobreviver aos riscos diários da lida com o fogo, que converte a madeira em carvão. É uma vida cinza, como as fotografias em preto e branco que ilustram esta reportagem.
Segundo o MPT, desigualdade social, baixa escolaridade e migração de pessoas para outros Estados na promessa de um futuro melhor são algumas das causas da exploração de mão de obra que fere a dignidade humana e ignora direitos conquistados desde a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No Brasil, submeter alguém a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e restrições de locomoção do trabalhador é crime, que pode levar à pena de reclusão de dois a oito anos de prisão, tendo ainda o agravo correspondente à violência praticada, amparados pelo Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que caracteriza esses elementos como a redução de um ser humano à condição análoga a de um escravizado.
O juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 11ª Região em Manaus, doutor em Direito Trabalhista, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Igo Zany Nunes Corrêa, explica que a justiça estuda as novas formas de exploração, novas formas de escravidão e as velhas práticas escravagistas, o que permite que trabalhos realmente degradantes sejam vistos como trabalho escravo.
“O trabalho escravo, hoje, saiu dessa esfera de prender a pessoa, impossibilitar de ela ir e vir, e está dentro de uma esfera de degradação da pessoa humana. Então, para além da restrição de ir e vir, temos outras condições degradantes. Sem banheiro, sem alojamento devido, comida estragada, você, basicamente, a submete [à condição] de sub-humana, e isso faz com que incorra nesse tipo de crime”
– Igo Zany Nunes Corrêa, juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 11ª Região em Manaus, doutor em Direito
Trabalhista, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O jurista explica que é importante identificar os tipos de exploração em que o trabalhador está sendo submetido. “Tudo isso hoje, por analogia, se considera trabalho escravo e, na verdade, é trabalho escravo. O modus operandi é o mesmo, uma exploração capitalista com uma sub-humanização e uma coisificação do ser humano”, relata.
Expressão do rosto do carvoeiro Jorge Pinheiro Nascimento, de Rorainópolis.
(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Segundo o Comitê Nacional do Ministério Público de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Conatetrap), em publicação no site institucional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o conceito de trabalho escravo contemporâneo trazido pelo ordenamento brasileiro representa grande avanço no combate a essa dura realidade, pois evidencia que, nos tempos atuais, sua configuração vai muito além da privação de liberdade, ocorrendo nas mais amplas situações de ofensa à dignidade do ser humano, como em hipóteses de submissão a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas ou forçadas por dívidas impostas aos trabalhadores.
Instituído pela Resolução CNMP n.º 197/2019, o Conatetrap objetiva elaborar estudos e propor medidas para o aperfeiçoamento da atuação do Ministério Público quanto ao tema.
Estatísticas preocupantes
O País vem apresentando, a cada ano, recordes de resgates de pessoas em condições análogas à escravidão. Apenas nos três primeiros meses de 2023, o Brasil bateu recorde de resgate de trabalhadores: foram 918 resgatados, até o dia 20 de março. O número é o maior, para o período, nos últimos 15 anos. Segundo o MPT, desde que foram criados os grupos especializados em fiscalização no ano de 1995, mais de 60 mil pessoas em situação análoga à escravidão foram resgatadas em todo o País nestas condições, até 2022.

Perpetuação escravista
Mais de 130 anos após o fim da escravidão no Brasil, com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, ainda existem frutos da exploração de seres humanos, pois a sociedade brasileira seguiu reproduzindo os mesmos padrões exploratórios. De acordo com especialistas ouvidos pela CENARIUM, a posição do Brasil nas relações econômicas globais é uma das responsáveis por essa continuidade.
Historiador, psicanalista e professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) campus Presidente Figueiredo (distante 126 km de Manaus), Ygor Olinto Rocha Cavalcante, que concentra suas pesquisas sobre a escravidão na Amazônia, e lutas sociais pela liberdade e pela cidadania, explica o histórico da exploração do trabalho escravo.
Segundo Ygor, a escravização também é a base de uma exploração simbólica, porque a propriedade sobre uma pessoa não é apenas uma questão econômica, ela também é uma questão de poder. “Esse domínio se dá tanto no passado quanto hoje, com o domínio sobre o voto de alguém, sobre a perspectiva, sobre a cultura. O controle sobre uma pessoa foi e ainda é a chave para a nobilitação da pessoa”, diz.
Ygor é autor dos livros e artigos “Histórias de Joaquina: escravidão e liberdade no Amazonas (Revista Afro-Asia)”; “Uma viva e permanente ameaça: resistência, rebeldia e fugas escravas no Amazonas Imperial (Paco Editorial, 2015)”; e “Abolição à sombra do cativeiro: raça, gênero, classe e educação no Amazonas do século XIX (Editora CRV, 2021)”.

O especialista explica que a situação no Brasil e na Amazônia não mudou tanto em relação a processos exploratórios. Para Ygor, o País continua sendo palco para a exploração, tendo em vista que parte de sua economia ainda gira em torno disso. “Num certo sentido, todo brasileiro sonha em ser senhor de escravizados. De certa forma, a gente aprendeu a enriquecer ou a melhorar de vida nos valendo da exploração do trabalho de outro que está numa situação mais vulnerável”, relata.
Conforme o levantamento da reportagem, com base no Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, a maioria dos casos de trabalho escravizado contemporâneo na Amazônia está relacionada a atividades rurais, sobretudo o trabalho em fazendas ou em atividades de produção florestal (nativas e plantadas).
Segundo o Sistema Nacional de Informações Florestais, do governo federal, na produção florestal, a matéria-prima pode ser proveniente de florestas plantadas ou de florestas naturais. A transformação da matéria-prima florestal resulta em produtos madeireiros e não madeireiros. A Região Amazônica é o maior fornecedor desses produtos para as demais regiões do Brasil e exterior, culminando em trabalhos degradantes e exaustivos, que requerem muitas horas de atividade e grande esforço físico.
“As causas da exploração do trabalho se devem ao fato de que o trabalho não é livre. Ele não é emancipado. E a gente está vendo isso hoje. As condições de relações de trabalho tornaram-se mais precárias“
– Ygor Olinto Rocha Cavalcante, historiador, psicanalista e professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) campus Presidente Figueiredo.
Lacunas na Amazônia
Na visão do antropólogo, escritor, jornalista e professor universitário Paulo Queiroz, as relações de exploração de trabalho ainda são muito factuais e precisam ser amplamente discutidas. Ele cita que, atualmente, existe um mimetismo que ajuda a encobrir casos de trabalho análogo à escravidão. “A situação análoga à escravidão ainda existe muito nos lugares mais longínquos da Amazônia, onde, por exemplo, a legislação trabalhista não consegue alcançar e fiscalizar”, avalia.
Segundo o especialista, isso acontece devido à extrema necessidade de algumas famílias que acabam se subjugando para garantir a sobrevivência. “A gente sabe o Estado de miserabilidade diante de uma possibilidade para sobreviver, isso é antigo e existe até hoje de maneira oculta e disfarçada”, conclui.

Donos não identificados
Durante a visita da reportagem às madeireiras e carvoarias de Rorainópolis (RR), a CENARIUM perguntou sobre os donos do local e os entrevistados não souberam ou não quiseram responder quem eram e afirmaram não estarem no local naquele momento. Das três carvoarias visitadas em Rorainópolis, apenas duas tinham placa de identificação. A reportagem buscou contato por meio dos nomes, mas os telefones encontrados não funcionam.
Em Boa Vista, a reportagem questionou os trabalhadores da carvoaria visitada para saber se havia algum dono que pudesse conversar sobre a situação encontrada, mas os relatos foram de que não há apenas um único dono, e que é difícil identificá-los. Segundo os carvoeiros ouvidos pela CENARIUM, os materiais chegam à carvoaria por meio de caminhões que fazem a coleta do lixo urbano na cidade.
Como Boa Vista é uma capital e está em pleno crescimento populacional, a área do desmatamento no Estado é grande e é dessa área que são recolhidas as madeiras para se fazer o carvão vegetal. Sobre os compradores das sacas de carvão, os trabalhadores dizem que são comerciantes da cidade que chegam ao local para comprar. O valor da venda varia entre R$ 10 e R$ 100.

Questionado pela reportagem, o MPT explicou que parte dos trabalhadores são associados a uma cooperativa e outra parte não é. Usualmente, há pessoas lá que são donas de um ou alguns poucos fornos e “alugam” para diaristas. O MPT classificou a situação das carvoarias de Boa Vista como: “O cenário é bem complexo. Não existe um dono”, informou a assessoria do órgão.
Impactos na saúde
As condições a que são submetidos os trabalhadores nas carvoarias são prejudiciais à saúde, se não houver a utilização de equipamento adequado de segurança. A temperatura de um forno após a queima do carvão pode variar de 200°C a 450°C, dependendo do momento da queima, segundo a pesquisa “Resfriamento Rápido de Fornos de Carbonização”, dos pesquisadores Delly Oliveira Filho, Carlos A. Teixeira, Juarez de S. e Silva, Hamilton O. Reis e Cristhian L. Vorobieff, publicada na Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO).
A pesquisa apontou que nas primeiras 40 horas do processo acontece a secagem da lenha e, após isso, nas 28 horas restantes ocorre a carbonização. Após a abertura dos fornos, os carvoeiros jogam água, para acelerar o resfriamento do material e, assim, agilizar o ensacamento.

De acordo com o estudo “Processo de trabalho e saúde dos trabalhadores na produção artesanal de carvão vegetal em Minas Gerais, Brasil”, dos pesquisadores Elizabeth Costa Dias, Ada Ávila Assunção, Cláudio Bueno Guerra e Hugo Alejandro Cano Prais, é possível notar riscos em todas as fases do processamento do carvão, desde o corte de toras até o momento em que se retira o material dos fornos, sendo esse último o momento mais perigoso da atividade.
“A retirada do carvão do forno configura uma situação crítica, observando-se um sinergismo entre o esforço físico despendido, a repetitividade dos movimentos, as condições climáticas adversas, a exposição a altas temperaturas e a falta de condições mínimas de higiene e conforto”, escrevem.
O estudo afirma que o trabalho manual de produção de carvão expõe trabalhadores a relações injustas e instáveis. “As condições de trabalho são inadequadas, sem o mínimo conforto, os equipamentos e instrumentos de trabalho são arcaicos e sem proteção”, diz o texto do estudo.
“As exigências de grande esforço físico, a exposição ao ruído e vibração pelo uso da motosserra, à radiação solar excessiva, ao calor emitido pelos fornos, às substâncias químicas produzidas na combustão da madeira e à picada por animais peçonhentos são algumas das condições de risco para a saúde identificadas no estudo”, concluem.