‘Reféns do Carvão’: exploração de trabalhadores em carvoarias na Amazônia

Trabalhador em meio a toras de madeiras e fornos (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Ricardo Oliveira e Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – Jornadas longas de trabalho, alojamentos precários, falta de materiais de segurança e de instalações sanitárias e baixa remuneração estão na lista de irregularidades flagradas em ambientes nos quais, até hoje, perdura a exploração do trabalho, conhecida como “escravidão contemporânea”. No mês em que é celebrado o Dia do Trabalhador, no dia 1º de maio, a REVISTA CENARIUM denuncia, em uma série de reportagens, situações de trabalho análogo à escravidão na Amazônia a partir das histórias de carvoeiros de Roraima. Eles representam a ponta de um iceberg na região, onde 27,9 mil trabalhadores escravizados foram resgatados nos últimos 27 anos, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Carvoaria Roraima Verde, em Nova Colina, distrito de Rorainópolis (RR) (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A reportagem esteve em carvoarias nos municípios de Boa Vista e Rorainópolis, no Estado de Roraima, entre janeiro e março de 2023, e identificou trabalhadores em situações degradantes, sem registros empregatícios, com jornadas de trabalho de até 14 horas diárias, em locais de estrutura inadequada, com ausência de itens essenciais, como água potável e materiais de segurança; baixa remuneração, que pode chegar a R$ 10 ou R$ 100, por dia; e exposição a condições insalubres, com altas temperaturas, fumaça e sujeira. O cenário encontrado pela reportagem é similar aos de alvos de operações do MPT em diversos Estados da Amazônia Legal, que já resgataram milhares de trabalhadores escravizados, ao longo das últimas décadas.

Magros, vestindo camisetas, bermudas e calçando chinelos, os carvoeiros encontrados pela reportagem passam os dias cobertos da negra fuligem de carvão, que pinta suas peles, na maioria, de pardos. E, sem oportunidades melhores de garantir o sustento, comem e bebem o que dá e tentam sobreviver aos riscos diários da lida com o fogo, que converte a madeira em carvão. É uma vida cinza, como as fotografias em preto e branco que ilustram esta reportagem.

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Segundo o MPT, desigualdade social, baixa escolaridade e migração de pessoas para outros Estados na promessa de um futuro melhor são algumas das causas da exploração de mão de obra que fere a dignidade humana e ignora direitos conquistados desde a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Carvoeiro Anibal José, 20, trabalha sem proteção adequada em Boa Vista, Roraima (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

No Brasil, submeter alguém a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e restrições de locomoção do trabalhador é crime, que pode levar à pena de reclusão de dois a oito anos de prisão, tendo ainda o agravo correspondente à violência praticada, amparados pelo Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que caracteriza esses elementos como a redução de um ser humano à condição análoga a de um escravizado.

O juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 11ª Região em Manaus, doutor em Direito Trabalhista, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Igo Zany Nunes Corrêa, explica que a justiça estuda as novas formas de exploração, novas formas de escravidão e as velhas práticas escravagistas, o que permite que trabalhos realmente degradantes sejam vistos como trabalho escravo.

“O trabalho escravo, hoje, saiu dessa esfera de prender a pessoa, impossibilitar de ela ir e vir, e está dentro de uma esfera de degradação da pessoa humana. Então, para além da restrição de ir e vir, temos outras condições degradantes. Sem banheiro, sem alojamento devido, comida estragada, você, basicamente, a submete [à condição] de sub-humana, e isso faz com que incorra nesse tipo de crime”

– Igo Zany Nunes Corrêa, juiz do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 11ª Região em Manaus, doutor em Direito
Trabalhista, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O jurista explica que é importante identificar os tipos de exploração em que o trabalhador está sendo submetido. “Tudo isso hoje, por analogia, se considera trabalho escravo e, na verdade, é trabalho escravo. O modus operandi é o mesmo, uma exploração capitalista com uma sub-humanização e uma coisificação do ser humano”, relata.

Expressão do rosto do carvoeiro Jorge Pinheiro Nascimento, de Rorainópolis.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Segundo o Comitê Nacional do Ministério Público de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Conatetrap), em publicação no site institucional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o conceito de trabalho escravo contemporâneo trazido pelo ordenamento brasileiro representa grande avanço no combate a essa dura realidade, pois evidencia que, nos tempos atuais, sua configuração vai muito além da privação de liberdade, ocorrendo nas mais amplas situações de ofensa à dignidade do ser humano, como em hipóteses de submissão a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas ou forçadas por dívidas impostas aos trabalhadores. 

Instituído pela Resolução CNMP n.º 197/2019, o Conatetrap objetiva elaborar estudos e propor medidas para o aperfeiçoamento da atuação do Ministério Público quanto ao tema.

Estatísticas preocupantes

O País vem apresentando, a cada ano, recordes de resgates de pessoas em condições análogas à escravidão. Apenas nos três primeiros meses de 2023, o Brasil bateu recorde de resgate de trabalhadores: foram 918 resgatados, até o dia 20 de março. O número é o maior, para o período, nos últimos 15 anos. Segundo o MPT, desde que foram criados os grupos especializados em fiscalização no ano de 1995, mais de 60 mil pessoas em situação análoga à escravidão foram resgatadas em todo o País nestas condições, até 2022.

Carvoeiro trabalha sem equipamentos de segurança em empresa de Boa Vista (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Perpetuação escravista

Mais de 130 anos após o fim da escravidão no Brasil, com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, ainda existem frutos da exploração de seres humanos, pois a sociedade brasileira seguiu reproduzindo os mesmos padrões exploratórios. De acordo com especialistas ouvidos pela CENARIUM, a posição do Brasil nas relações econômicas globais é uma das responsáveis por essa continuidade.

Historiador, psicanalista e professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) campus Presidente Figueiredo (distante 126 km de Manaus), Ygor Olinto Rocha Cavalcante, que concentra suas pesquisas sobre a escravidão na Amazônia, e lutas sociais pela liberdade e pela cidadania, explica o histórico da exploração do trabalho escravo.

Segundo Ygor, a escravização também é a base de uma exploração simbólica, porque a propriedade sobre uma pessoa não é apenas uma questão econômica, ela também é uma questão de poder. “Esse domínio se dá tanto no passado quanto hoje, com o domínio sobre o voto de alguém, sobre a perspectiva, sobre a cultura. O controle sobre uma pessoa foi e ainda é a chave para a nobilitação da pessoa”, diz.

Ygor é autor dos livros e artigos “Histórias de Joaquina: escravidão e liberdade no Amazonas (Revista Afro-Asia)”; “Uma viva e permanente ameaça: resistência, rebeldia e fugas escravas no Amazonas Imperial (Paco Editorial, 2015)”; e “Abolição à sombra do cativeiro: raça, gênero, classe e educação no Amazonas do século XIX (Editora CRV, 2021)”.

Filho de casal dorme em rede, no abrigo improvisado em carvoaria de Rorainópolis (RR) (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O especialista explica que a situação no Brasil e na Amazônia não mudou tanto em relação a processos exploratórios. Para Ygor, o País continua sendo palco para a exploração, tendo em vista que parte de sua economia ainda gira em torno disso. “Num certo sentido, todo brasileiro sonha em ser senhor de escravizados. De certa forma, a gente aprendeu a enriquecer ou a melhorar de vida nos valendo da exploração do trabalho de outro que está numa situação mais vulnerável”, relata.

Conforme o levantamento da reportagem, com base no Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, a maioria dos casos de trabalho escravizado contemporâneo na Amazônia está relacionada a atividades rurais, sobretudo o trabalho em fazendas ou em atividades de produção florestal (nativas e plantadas).

Segundo o Sistema Nacional de Informações Florestais, do governo federal, na produção florestal, a matéria-prima pode ser proveniente de florestas plantadas ou de florestas naturais. A transformação da matéria-prima florestal resulta em produtos madeireiros e não madeireiros. A Região Amazônica é o maior fornecedor desses produtos para as demais regiões do Brasil e exterior, culminando em trabalhos degradantes e exaustivos, que requerem muitas horas de atividade e grande esforço físico.

“As causas da exploração do trabalho se devem ao fato de que o trabalho não é livre. Ele não é emancipado. E a gente está vendo isso hoje. As condições de relações de trabalho tornaram-se mais precárias

– Ygor Olinto Rocha Cavalcante, historiador, psicanalista e professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam) campus Presidente Figueiredo.

Lacunas na Amazônia

Na visão do antropólogo, escritor, jornalista e professor universitário Paulo Queiroz, as relações de exploração de trabalho ainda são muito factuais e precisam ser amplamente discutidas. Ele cita que, atualmente, existe um mimetismo que ajuda a encobrir casos de trabalho análogo à escravidão. “A situação análoga à escravidão ainda existe muito nos lugares mais longínquos da Amazônia, onde, por exemplo, a legislação trabalhista não consegue alcançar e fiscalizar”, avalia. 

Segundo o especialista, isso acontece devido à extrema necessidade de algumas famílias que acabam se subjugando para garantir a sobrevivência. “A gente sabe o Estado de miserabilidade diante de uma possibilidade para sobreviver, isso é antigo e existe até hoje de maneira oculta e disfarçada”, conclui.

Donos não identificados

Durante a visita da reportagem às madeireiras e carvoarias de Rorainópolis (RR), a CENARIUM perguntou sobre os donos do local e os entrevistados não souberam ou não quiseram responder quem eram e afirmaram não estarem no local naquele momento. Das três carvoarias visitadas em Rorainópolis, apenas duas tinham placa de identificação. A reportagem buscou contato por meio dos nomes, mas os telefones encontrados não funcionam.

Em Boa Vista, a reportagem questionou os trabalhadores da carvoaria visitada para saber se havia algum dono que pudesse conversar sobre a situação encontrada, mas os relatos foram de que não há apenas um único dono, e que é difícil identificá-los. Segundo os carvoeiros ouvidos pela CENARIUM, os materiais chegam à carvoaria por meio de caminhões que fazem a coleta do lixo urbano na cidade.

Como Boa Vista é uma capital e está em pleno crescimento populacional, a área do desmatamento no Estado é grande e é dessa área que são recolhidas as madeiras para se fazer o carvão vegetal. Sobre os compradores das sacas de carvão, os trabalhadores dizem que são comerciantes da cidade que chegam ao local para comprar. O valor da venda varia entre R$ 10 e R$ 100. 

Madeiras são recolhidas na cidade e levadas até a carvoaria de Boa Vista (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Questionado pela reportagem, o MPT explicou que parte dos trabalhadores são associados a uma cooperativa e outra parte não é. Usualmente, há pessoas lá que são donas de um ou alguns poucos fornos e “alugam” para diaristas. O MPT classificou a situação das carvoarias de Boa Vista como: “O cenário é bem complexo. Não existe um dono”, informou a assessoria do órgão.

Impactos na saúde

As condições a que são submetidos os trabalhadores nas carvoarias são prejudiciais à saúde, se não houver a utilização de equipamento adequado de segurança. A temperatura de um forno após a queima do carvão pode variar de 200°C a 450°C, dependendo do momento da queima, segundo a pesquisa “Resfriamento Rápido de Fornos de Carbonização”, dos pesquisadores Delly Oliveira Filho, Carlos A. Teixeira, Juarez de S. e Silva, Hamilton O. Reis e Cristhian L. Vorobieff, publicada na Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO).

A pesquisa apontou que nas primeiras 40 horas do processo acontece a secagem da lenha e, após isso, nas 28 horas restantes ocorre a carbonização. Após a abertura dos fornos, os carvoeiros jogam água, para acelerar o resfriamento do material e, assim, agilizar o ensacamento. 

Processo artesanal de carvão vegetal pode demorar dias para ficar pronto para ser retirado (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

De acordo com o estudo “Processo de trabalho e saúde dos trabalhadores na produção artesanal de carvão vegetal em Minas Gerais, Brasil”, dos pesquisadores Elizabeth Costa Dias, Ada Ávila Assunção, Cláudio Bueno Guerra e Hugo Alejandro Cano Prais, é possível notar riscos em todas as fases do processamento do carvão, desde o corte de toras até o momento em que se retira o material dos fornos, sendo esse último o momento mais perigoso da atividade.

A retirada do carvão do forno configura uma situação crítica, observando-se um sinergismo entre o esforço físico despendido, a repetitividade dos movimentos, as condições climáticas adversas, a exposição a altas temperaturas e a falta de condições mínimas de higiene e conforto”, escrevem.

O estudo afirma que o trabalho manual de produção de carvão expõe trabalhadores a relações injustas e instáveis. “As condições de trabalho são inadequadas, sem o mínimo conforto, os equipamentos e instrumentos de trabalho são arcaicos e sem proteção”, diz o texto do estudo.

As exigências de grande esforço físico, a exposição ao ruído e vibração pelo uso da motosserra, à radiação solar excessiva, ao calor emitido pelos fornos, às substâncias químicas produzidas na combustão da madeira e à picada por animais peçonhentos são algumas das condições de risco para a saúde identificadas no estudo”, concluem.

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