‘Reféns do Carvão’: relações de trabalho construídas em cima da mão de obra barata

Trabalhadora em Boa Vista, Roraima, mostra ganhos do dia (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Ricardo Oliveira e Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – A Amazônia, assim como o Brasil de forma geral, nasceu de um processo de escravidão. Historicamente, as relações de trabalho foram construídas em cima da exploração de mão de obra barata para obtenção de um lucro maior, segundo o historiador, psicanalista e professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam), campus Presidente Figueiredo (distente 126 km de Manaus), Ygor Olinto Rocha Cavalcante.

O historiador lembra que, no século XVI, o Brasil tinha como principal demonstração de poder a detenção de pessoas escravizadas, em sua maioria negros africanos, homens, mulheres e crianças, trazidos por traficantes atlânticos. A prática da escravização de pessoas recebeu o apoio da Igreja Católica que, em comunhão com a Coroa Portuguesa, classificava os negros africanos como “pessoas sem alma”, enquanto os nativos brasileiros, após aceitarem a religião jesuíta, eram considerados pessoas com alma, ou seja, não eram escravizados. O tráfico de escravizados foi, por muitos anos, um dos meios econômicos mais rentáveis para a Coroa Portuguesa, devido aos impostos cobrados aos traficantes por navio negreiro.

Trabalhador carregando tora de madeira ao forno para fabricação de carvão (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Passado o período colonial, após quase 400 anos de escravidão, caminhando para o século XIX, quando se instituiu a abolição da escravatura, Igor aponta que outros discursos entraram em cena, como a questão racial. Apesar de a escravidão ter acabado, afirma o professor, muitos trabalhadores continuaram sendo submetidos a trabalhos degradantes, por falta de opção.

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A segregação racial é uma espécie de lembrança da escravidão que acaba por ocultar a permanência das relações escravistas, sobre outros signos, outros símbolos, com sua lógica fundamental continuada”, diz o historiador. “Não é à toa que hoje a gente experimenta a exploração do ouro, a exploração de minérios e da própria exploração mesmo da população de modo geral e na Amazônia de uma maneira tão brutal”, conclui.

Ygor ressalta que a partir do século XIX surgiram também discursos identitários nativistas, que eram apoiados pelo discurso de segregação. “É um momento também que se reforça ali um discurso sobre o que é ser amazônida. O que é fazer parte do povo da Amazônia e o que é fazer parte do povo brasileiro. Esses dois signos pretendem uma universalidade, pretendem ser uma espécie de guarda-chuva, mas cuja contrapartida para você fazer parte desse ‘universal amazônida’ é justamente negar sua cultura e seus traços africanos e indígenas”, diz.

A Amazônia foi e é efeito do processo de escravização através da produção de arroz, cacau, café, borracha e até de serviços urbanos que, na nossa história, também estão marcados pela escravização”, explica o historiador, que pontua que a exploração do trabalho é uma instituição base da extração material, por conta da produção de mercadorias que fazem o Brasil ser um dos maiores exportadores de insumos como soja, minérios, carvão e outros. “Essa reprodução de poder é reproduzida, inclusive, nas hierarquias sociais que perduram até hoje”, aponta o professor.

Perpetuação de poder

Segundo os estudos do historiador, a escravidão não serviu apenas para acúmulo de riquezas, mas também para a obtenção de poder vista, atualmente, nas relações hierárquicas. “Quando você tem uma comunidade de tutelados, subalternos, de pessoas exploradas nesse sentido, o poder sobre outras que não dispõem dos mesmos dispositivos aumenta também”, explica. “A escravização também é uma instituição base para as nossas relações, porque, de modo geral, a gente reproduz de alguma maneira essas relações recortadas numa base muito bem definida de quem manda e quem obedece nos determinados cenários em que a gente circula”, diz.

Jovens em carvoaria de Boa Vista (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Escravizado urbano e rural

O trabalho escravizado pode ser identificado tanto em meio urbano quanto rural. No meio urbano, o trabalho doméstico de lavar, engomar, passar, cozinhar e cuidar da casa já foi, por muitos anos, uma atividade específica de pessoas escravizadas. Segundo o historiador Ygor Olinto Rocha, apesar de leis definidas para essa atividade, ainda há no Brasil pessoas, em sua maioria mulheres, resgatadas de condições análogas à escravidão, desenvolvendo trabalhos domésticos.

Já no âmbito rural é onde até hoje se perdura a maior parcela do trabalho escravizado no Brasil, ressalta o historiador. Conforme levantamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, as principais atividades onde houve resgate em 2022 aconteceram no cultivo de cana-de-açúcar; produção de carvão vegetal; cultivo de alho, café, maçã e soja; extração de pedras e madeira; criação de bovinos; construção civil; e em restaurantes e confecção de roupas.

Resgatados na Amazônia

O trabalho escravo contemporâneo atinge os setores mais frágeis do País e impacta diretamente na produção agrícola, bovina e florestal. Um levantamento realizado pela REVISTA CENARIUM, com base no Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, do Ministério Público do Trabalho (MPT), mostra que, na Amazônia Legal, 27.979 pessoas foram resgatadas de trabalhos degradantes, entre 1995 e 2022.

As operações de resgate ocorrem em parceria com diversas instituições federais, na busca por assegurar os direitos fundamentais dos trabalhadores. Em 2022, o MPT formou uma força de combate ao trabalho análogo à escravidão no País. Em conjunto com a Polícia Federal (PF), a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União, a Operação Resgate realizou uma série de fiscalizações que resultaram no resgate de 2.575 trabalhadores.

Trabalhador em carvoaria de Rorainópolis (RR) (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Além disso, a ação integrada teve como objetivo verificar o cumprimento das regras de proteção ao trabalho, a coleta de provas para garantir a responsabilização criminal daqueles que lucram com a exploração e a reparação dos danos individuais e coletivos causados aos resgatados. Ao todo, foram realizadas 462 fiscalizações que resultaram em mais de R$ 8 milhões em verbas salariais e rescisórias.

Região Norte

Conforme os dados do Observatório, para o período de 1995 a 2022, das 27.979 pessoas resgatadas nos nove Estados da Amazônia Legal, o Estado do Pará lidera a lista, com o resgate de 13.384 pessoas, seguido por Mato Grosso, com 6.139, Maranhão com 3.610, Tocantins com 3.003, Rondônia com 957, Amazonas com 464, Acre com 263, Roraima com 112 e Amapá com 37.

Trabalhadora em Boa Vista, Roraima, mostra ganhos do dia (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O Observatório é uma iniciativa desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no âmbito da iniciativa SmartLab de Trabalho Decente, que compila o banco de dados do Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado, do Sistema de Acompanhamento do Trabalho Escravo (Sisacte) e do Sistema Coete (Controle de Erradicação do Trabalho Escravo), referente ao período iniciado em 2003 (Primeiro Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), além de dados brutos fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil.

Em um panorama recente, coletando dados de 2018 a 2022, o Maranhão lidera a lista, com 273 resgatados em situação análoga à escravidão, seguido do Pará, com 88, Mato Grosso, com 85 resgatados, Rondônia, com 53, Tocantins, com 29, Acre, com 27, Amazonas, com 23, Roraima, com 17, e o Amapá sendo o único que não resgatou ninguém no período consultado.

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