‘Reféns do Carvão’: a rotina insalubre dos trabalhadores nas carvoarias de Roraima

A "linha de montagem"dos fornos de carvão e a fumaça constante (Ricardo Oliveira/Cenarium)
Ívina Garcia, Gabriel Abreu e Ricardo Oliveira – Da Revista Cenarium

RORAINÓPOLIS (RR) – O sol ainda nem nasceu, quando os trabalhadores da carvoaria começam a chegar na Azul Indústria e Comércio Ltda., madeireira localizada pouco antes da entrada de Rorainópolis, no sul do Estado de Roraima, a 260 quilômetros da capital Boa Vista. Às 4h, já é possível ouvir o barulho de serras trabalhando e homens arrastando ripas de madeira.

Ao fundo da madeireira, um caminho de terra batida leva a um sinal de fumaça branca. Carvoeiros checam os fornos em que as toras de madeira ardem até ficarem carbonizadas. A produção de carvão faz parte de uma cadeia de exploração de terras, que passa pelo desmatamento para a criação de gado, soja ou garimpo, onde, após esgotados os recursos, o que sobra é uma carvoaria.

BR-174 é via principal do município de Rorainópolis (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A Azul é apenas uma das mais de 30 madeireiras que existem em Rorainópolis e nos distritos próximos, com uma organização idêntica: na entrada, existe uma serraria, que recebe as cargas de toras e é responsável pela produção de tábuas e ripas para a construção civil. Nos fundos estão os fornos feitos de tijolos e barro, onde as sobras de madeira são transformadas em carvão. O material produzido nessas carvoarias abastece a mineradora Taboca e os Estados de Roraima e Amazonas.

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O processo da queima de madeira pode durar de três a dez dias, dependendo da quantidade colocada no forno. Segundo os carvoeiros, cada forno produz de 70 a 120 sacos de carvão, cada saco pesa 25 quilos. O valor de venda varia de R$ 25 a R$ 40, por saco. O pagamento dos carvoeiros depende da quantidade produzida por forno, podendo variar de R$ 70 a R$ 200 a diária, pagos apenas por dia trabalhado, sem considerar nenhum benefício.

Domingos Silva, 55, trabalha, há 12 anos, na carvoaria Azul. Saiu do Maranhão para o Pará, há 20 anos [2003], para trabalhar com o mesmo patrão que fundou a madeireira em Rorainópolis (RR). No território paraense, ficou por oito anos, antes de se mudar para Roraima [2011]. Domingos conta que em “dias bons”, consegue faturar R$ 160 a diária, mas optou pelo pagamento mensal.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Em um dia bom, a gente chega a tirar 200 sacos, depende de como a madeira chega aqui, né. Daí, nossa diária pode chegar a R$ 160, mas a gente optou por receber só final do mês. A gente só recebe se trabalha”, explica. “Aposentar, só se a gente se machucar, quebrar uma perna, aí pede do INSS”, afirma Domingos, que mora em Rorainópolis com o filho de 20 anos.

Há pelo menos 10 anos, Domingos e outros trabalhadores da carvoaria se mantêm sem carteira assinada, das 4h às 14h, diariamente, sem direito a férias remuneradas, folgas remuneradas, 13º salário, aposentadoria e outros direitos trabalhistas básicos. “Trabalhamos dois anos de carteira assinada, no começo da serraria, aí, depois, o dono vendeu para esse outro e a gente não tem mais a carteira. O Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] ‘dava muito no pé’ e ele desistiu”, conta.

Ele até queria levar tudo legalizado, com carteira assinada, mas tinha muita burocracia e o Ibama vinha era uma ‘bomba doida’. Eles chegavam e multavam, porque encontravam a madeira ilegal. Prendiam a madeira e fechavam a serraria”, conta. Domingos revela que é difícil trabalhar na legalidade. “Não tem quem trabalhe 100% aqui. É difícil ter uma serraria dessa, é 70% ou 60% o trabalho legalizado que vem de projeto do Ibama, mas o resto é madeira ilegal”, revela.

Assim como Domingos, Jorge Pinheiro Nascimento, 47, saiu de sua terra natal para trabalhar em Rorainópolis. Natural de Itacoatiara, a 175 quilômetros da capital do Amazonas, Manaus, Jorge não tem perspectivas de mudança de vida e trabalha exclusivamente para sobreviver. Quando a reportagem chegou ao local, Jorge descarregava um forno com carvão pronto. Sem máscara, luvas ou quaisquer equipamentos de segurança, Jorge carrega no rosto e nas mãos as marcas do trabalho fatigante.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Questionado sobre como a empresa dá assistência, ele explicou que os equipamentos mais atrapalham do que ajudam. “Eles dão equipamento, essas luvas, bota e as máscaras, mas a questão é que atrapalha muito, não é tão adequado. Quando a gente entra no forno não tem como ficar de máscara, porque a gente não consegue respirar”, explica.

Na madeireira Azul, existe um abrigo com ripas de madeira construído para descanso e almoço, que possui poucas condições de conforto. Com metade de uma parede e telhas de zinco, os trabalhadores ficam em pé, em frente a uma mesa de madeira, onde dividem um almoço em uma vasilha de plástico. O bebedouro disponibilizado para eles fica em um recipiente de plástico, sem resfriamento e os pertences individuais são guardados em um mesmo baú de madeira onde eles guardam a serra utilizada no trabalho, que fica trancado com um cadeado. O calor e a desidratação são riscos diários aos quais os carvoeiros são submetidos.

(Ívina Garcia/Revista Cenarium)

O carvoeiro Domingos, por exemplo, precisou procurar por atendimento médico, devido ao calor do forno e a desidratação. Ele revela que sentiu fortes dores nas costas. “Perdi um dia de trabalho porque estava com infecção urinária. Lá, a enfermeira chega só de tarde, mas tem que ir cedo para conseguir atendimento. Aqui a gente tem água, mas acho que também fiquei assim por causa do calor do forno”, avalia.

Mudança de vida

Em outra carvoaria mais perto da entrada da cidade, a reportagem encontrou o jovem venezuelano Daniel de Jesus, 23. Diferente da carvoaria Azul, no local, existiam apenas fornos sem uma madeireira para abastecê-los. Daniel não soube explicar à reportagem de onde a madeira vem e nem qual seria o nome da empresa, já que o local não possuía placa de identificação. Ele conta que o trabalho é incerto, devido à carvoaria só funcionar quando os donos conseguem as sobras de madeira.

A reportagem esteve em três ocasiões acompanhando o trabalho solitário de Daniel. Em um desses momentos, a esposa dele, Jennifer Cerpa, 17, e o filho, Rubiel, de 1 ano, estavam abrigados em um casebre de madeira. Na rede atada a poucos metros de um forno, o pequeno Rubiel dormia, enquanto o pai trabalhava para conseguir comprar remédios para o filho com febre e gripado. 

Criança dorme em rede próximo a fornos de carvão em Rorainópolis (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Segundo Jennifer, a farmácia do Sistema Único de Saúde (SUS) não tinha o remédio gratuito para gripe e, por isso, Daniel foi trabalhar na carvoaria naquele dia. “A mulher me chama para vir encher o forno. Hoje ela disse que ia me dar R$ 100 para comprar o remédio. Estamos esperando ela voltar, para a gente ir à farmácia depois daqui”, explica Daniel.

O jovem venezuelano estava afastado do trabalho nessa carvoaria, após sofrer queimaduras nas costas, devido ao calor do forno. “Queimei toda a minha costa, fiquei internado um tempo e precisei ficar dois meses afastado, porque tive queimadura de segundo grau. Fiquei internado dez dias para curar minha pele”, conta o jovem, que trabalha há quatro meses no local onde sofreu a queimadura. Daniel e Jennifer moram em Rorainópolis e dividem o aluguel de R$ 650 em um quitinete com outro homem que não faz parte da família.

Nova Colina: um construtor de fornos

Claudio ‘Mondrongo’, 46, constrói fornos de carvão no distrito de Nova Colina (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Ao sul de Rorainópolis, no distrito de Nova Colina, Claudio ‘Mondrongo’, 46, é o responsável pela construção dos fornos. A reportagem encontrou com Claudio na madeireira Roraima Verde, onde ele trabalha sem registro profissional. No local, mais de 20 fornos funcionam sob a supervisão de cerca de 15 trabalhadores, sendo a maioria deles venezuelanos. Com apenas dois brasileiros no local, a comunicação é basicamente em espanhol.

Aqui eu trabalho sem carteira porque me deixa mais livre, tem dias que tô (sic) aqui, tem dias que construo forno em outros distritos e, assim, eu me sustento”, explica. O trabalhador saiu do Maranhão ainda criança com a família e chegou a Roraima, onde começou a ajudar na construção de fornos e na produção de carvão, ainda aos 10 anos.

Trabalhador retira barro da propriedade para construção de novos fornos (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A construção dos fornos leva cerca de seis horas, utilizando tijolos comprados pelo dono da madeireira e barro retirado da propriedade por outros trabalhadores. Claudio conta que é o responsável pela construção de mais da metade dos fornos que existem ali e em outras madeireiras da região.

No Maranhão, eu trabalhava mais. Às vezes, eu era contratado para fazer 90 fornos de uma vez. Aqui sou chamado para construir uns quatro ou cinco fornos. Na semana passada, fiz quatro lá na RR (em uma madeireira na rodovia)”, conta. Cláudio fatura entre R$ 350 e R$ 700 por forno construído, dependendo do tamanho e da demanda, tendo vida útil de 3 a 10 anos, dependendo da construção.

Claudio também já realizou trabalhos na serraria do local, mas saiu depois que o Ministério Público do Trabalho (MPT) realizou operação para o local regularizar os trabalhadores. Depois disso, “Mondrongo” resolveu ficar apenas na informalidade, porque a madeireira não costuma pagar no prazo. “Aqui você trabalha uma semana e eles pagam só duas semanas depois, não dá para continuar assim. Daí, às vezes, sou chamado para construir forno em outros lugares e se eu tiver carteira assinada aqui não consigo ir, então prefiro ficar desse jeito”, conta.

Boa Vista: ‘Ou trabalhamos aqui, ou passamos fome’

O cenário em Boa Vista não é muito diferente do encontrado em Rorainópolis (distante 260 quilômetros da capital). Como se o tempo tivesse parado, as condições de trabalho nas carvoarias hoje não são diferentes das encontradas 40 anos atrás. Faltam alojamentos adequados, condições de higiene, água potável, registro em carteira de trabalho e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e sobram 12 horas de jornada diária para os mais de 20 trabalhadores que atuam na produção e na comercialização de carvão vegetal na carvoaria do Distrito Industrial, no trecho sul da BR-174, rodovia que liga Boa Vista a Manaus. 

Forno sendo abastecido por pedaços de toras de madeira (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A descoberta da carvoaria pela reportagem da REVISTA CENARIUM foi possível por conta da visita a um dos principais cartões-postais da capital, o Mirante Edileusa Lóz (situado no Parque Rio Branco). O monumento tem 120 metros de altura, sendo o ponto de observação mais alto de toda a Região Norte, que possibilita uma vista panorâmica de 360º de toda a cidade. É lá de cima que a fumaça chama a atenção de quem está vendo a cidade do alto. 

Para chegar à carvoaria, foi preciso sair do Centro de Boa Vista e voltar para a BR-174. O local fica na Zona Sul da cidade, atrás da garagem de uma empresa que faz o transporte intermunicipal e interestadual entre o Amazonas e Roraima. Segundo moradores da região, além da carvoaria, há uma espécie de lixão público, onde as pessoas jogam lixo e colocam fogo, provocando mais fumaça nos arredores.

A equipe de reportagem esteve na carvoaria no dia 1º de fevereiro deste ano. Os trabalhadores executavam diversas atividades, como corte, carregamento e transporte de madeira, colocada nos fornos para a queima (carbonização). Faziam também a retirada do carvão dos fornos, ensacamento, transporte e carregamento do produto nos caminhões. De chinelos ou com botinas furadas, os carvoeiros não usavam luvas, máscaras ou óculos, e estavam expostos ao forte calor. Fazia 35°C no dia em que a REVISTA CENARIUM esteve no local.

Na carvoaria, dentre os trabalhadores, a reportagem encontrou a família da brasileira Graça Vicente, 49 anos, casada com o venezuelano André Vicente e os três filhos do casal. Os cinco membros do núcleo familiar cumprem 12 horas de jornada diária, de segunda a sábado. Eles afirmaram que vieram para o Brasil por conta da falta de emprego na Venezuela. 

Graça relata que sobrevive do dinheiro que recebe trabalhando no local. Mãe, pai e filhos ganham entre R$ 70 e R$ 120 por dia trabalhado. Se não trabalharem, não recebem nada. A família relata que há dias em que a renda é de apenas R$ 20.

A maioria dos trabalhadores na carvoaria é de imigrantes que fugiram da crise econômica na Venezuela. “Ou trabalhamos aqui, ou passamos fome, porque emprego não tem. Alguns locais aqui de Boa Vista sequer aceitam a gente para trabalhar”, desabafa Graça.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Toda a madeira usada na fabricação do carvão vegetal é recolhida das áreas de derrubada da Floresta Amazônica ou do recolhimento do lixo produzido na cidade de Boa Vista. Alguns trabalhadores da área relataram que, no local, não há um dono fixo, e que chegaram lá por precisarem de dinheiro para se alimentar.

História de família

Durante a visita da reportagem, em um lugar improvisado, sem nenhuma higiene e sob uma lona quente, sentados em tijolos, Graça Vicente, o marido e os filhos comeram pães com mortadela, manteiga salgada e beberam dois refrigerantes gelados, para amenizar o calor e a fome.  Após o lanche, Graça descreveu como chegou à carvoaria com a família.

“Eu cheguei ao Brasil há dois anos [2021] e estávamos precisando de emprego. Até arranjei alguns trabalhos, mas não eram confortáveis, pois as pessoas mandavam muito e nunca estava bom. Um dia, eu e meu esposo estávamos andando na rodovia [BR-174] e avistamos a fumaça, quando perguntamos de uma das pessoas responsáveis daqui o que precisava para trabalhar. Um dos responsáveis disse para a gente vir no dia seguinte e foi assim que começamos a trabalhar aqui”, lembrou Graça.

Carvoeiros observam a queima das toras de madeira até ser transformada em carvão (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A brasileira, de sorriso tímido, revela na conversa, de pouco mais de seis minutos, o sonho de ver os filhos fora do trabalho da carvoaria. Graça diz que faz preces para que os filhos estudem. Os três possuem Ensino Médio. Uma das preocupações da mulher é com a saúde da família. O temor é de que adquiram doenças, por conta da exposição à fumaça.

“Algumas pessoas que trabalharam aqui já tiveram pneumonia, bronquite, asma, irritação na pele e nos olhos. É uma preocupação que eu tenho com todos nós, mas não tem outro jeito. É a minha forma de sustento”, afirma.

Geovani Vicente, de 20 anos, foi o único dos três filhos de Graça que aceitou falar com a reportagem, mas por pouco tempo. Ele relatou que sonha em deixar para trás o trabalho na carvoaria. 

“Eu não tenho um grande sonho. Eu só quero sair daqui e trabalhar em algo em que não fiquemos assim, cheios de poeira de carvão. Todo dia para mim é isso, tenho que chegar em casa e tomar banho para tirar a poeira”, afirmou o jovem. 

‘Preciso ajudar meu pai’ 

Caminhando mais para dentro da área da carvoaria do Distrito Industrial de Boa Vista, a reportagem encontrou outra venezuelana, Maria Isabel, que desde que chegou ao Brasil, aos 18 anos, trabalha na carvoaria. Hoje, com 23 anos, a função dela é abrir sacolas e ensacar os carvões que serão distribuídos aos supermercados de Boa Vista.

Para ela, trabalhar no local tem um motivo especial: ajudar o pai que ficou na Venezuela com outras irmãs. Maria Isabel mora em um bairro da Zona Sul de Boa Vista, com a mãe, o padrasto e dois irmãos. Filha caçula de 11 filhos do pai, ela trabalha, em média, 12 horas por dia na carvoaria, para enviar uma parte do valor para o pai. No mês, a jovem diz que consegue mais de R$ 1.200.

Eu trabalho aqui de segunda a sexta-feira. Hoje, o meu único sonho é ajudar o meu pai. A situação na Venezuela não está fácil e é daqui que eu posso ajudar ele. O meu pai trabalha lá como serralheiro e quase não aparece nada para ele. Aí eu tenho que ajudar, porque, às vezes, não tem o que comer. Se eu pudesse, eu o traria para cá”, afirmou a jovem.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Maria Isabel conta que chegou até a carvoaria por meio da indicação de uma amiga e uma prima. Ela relata a dificuldade que é trabalhar todos os dias no sol quente. “Não é bom, por causa do sol, o sol cansa muito. Mas por conta do dinheiro, é mais fácil ficar aqui, porque em outro lugar eu não vou conseguir o valor que consigo trabalhando aqui”.

O que dizem os órgãos de fiscalização

A REVISTA CENARIUM entrou em contato com os órgãos de fiscalização ambientais e de trabalho solicitando informações sobre a ocorrência de trabalho análogo à escravidão, possíveis crimes contra o meio ambiente e outras irregularidades nas carvoarias visitadas pela reportagem em Rorainópolis e nos arredores de Boa Vista (RR). A reportagem também questionou quais as ações ou medidas adotadas por esses órgãos visam coibir práticas irregulares e proteger os trabalhadores. 

Sobre as carvoarias de Rorainópolis, a CENARIUM entrou em contato, por meio de endereços de e-mails institucionais, com o Ministério Público do Trabalho (MPT) da 11ª Região, que abrange os Estados do Amazonas e Roraima, para perguntar sobre as ações nas carvoarias visitadas, e com o Ministério Público Federal (MPF), para questionar acerca de denúncias e processos em andamento sobre as madeireiras visitadas. À Polícia Federal (PF) e à Prefeitura Municipal de Rorainópolis, a reportagem pediu informações sobre quais ações estão sendo tomadas para coibir o desmatamento ilegal e outras atividades correlatas. Até o fechamento desta edição, no dia 06 de maio deste ano, não houve retorno de nenhum dos órgãos procurados.

Trabalhador sem equipamento de segurança em carvoaria de Rorainópolis (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a reportagem questionou sobre a informação de que a madeira utilizada nas carvoarias de Rorainópolis é ilegal. O órgão respondeu que a competência primária de licenciar e fiscalizar atividades de exploração madeireira, indústria de madeira e carvoaria em âmbito estadual é do órgão estadual de meio ambiente, a Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh). A reportagem tentou contato com a Femarh e a Secretaria de Comunicação do Estado (Secom), por meio dos números telefônicos disponibilizados no site do Governo de Roraima, mas as ligações não foram atendidas, até o fechamento desta edição.

Trabalhador carregando galões de água para resfriar fornos em Nova Colina (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“O Ibama realiza a gestão do Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais (Sinaflor), ferramenta cujo uso é compartilhado entre o Estado e os usuários. O instituto combate, principalmente, fraudes no uso do sistema. Em abril deste ano, em operação de combate a fraudes no módulo DOF e no Sinaflor em Roraima, o Ibama eliminou 3.316 metros cúbicos de créditos indevidos dos sistemas e aplicou quatro autos de infração a duas indústrias madeireiras fiscalizadas, no total de R$ 654 mil”, informou o instituto.

O Ibama informou ainda que as autuações foram aplicadas devido a informações falsas fornecidas aos sistemas e por manutenção de madeira nativa sem licença em depósito. Além disso, também foram apreendidos 511,6 metros cúbicos de madeira.

Boa Vista

Sobre a carvoaria de Boa Vista, segundo a assessoria de Comunicação do MPT, compete ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) fiscalizar e aplicar multas. Cabe ao MPT fazer Termo de Ajuste de Conduta ou acordo judicial, encaminhando à justiça.

Carvoaria em Boa Vista, Roraima (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

No site institucional, o Ministério do Trabalho informa que é “considerado trabalho em condição análoga à de escravo aquele que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.

O trabalhador e grande tora de madeira para virar carvão em Boa Vista, Roraima (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O MPT, por sua vez, informou que o trabalho análogo à escravidão pode ser verificado diante da submissão do trabalhador a condições degradantes: falta de acesso à água potável e até água para a higienização do corpo, o não fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual e de vestimentas adequadas, bem como a inalação de ar contaminado por partículas liberadas durante o processo produtivo do carvão. 

Na carvoaria do Distrito Industrial de Boa Vista, a reportagem da CENARIUM constatou que os trabalhadores são submetidos a situações que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo, conforme as definições do MTE e do MPT, em decorrência das condições degradantes de trabalho e do modo de vida que levam no local.

Jovens na carvoaria em Boa Vista (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Segundo informações obtidas pela reportagem no local, os trabalhadores não recebem nem mesmo salário, recebem apenas pela produtividade, o que leva à jornada exaustiva à qual, oficialmente, eles não são obrigados a se submeterem, mas acabam se submetendo por necessidade de sobrevivência. 

De acordo com Artigo 149 do Código Penal, “reduzir alguém à condição análoga de escravo, com jornada exaustiva, sujeitando-o a condições degradantes, constitui crime com pena de reclusão de 2 a 8 anos e multa, além da pena correspondente à violência”.

Denúncias

Em nota, o MPT informou que as denúncias de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas por meio do site mpt.mp.br, aplicativo Pardal ou pelo Disque 100. A denúncia pode ser sigilosa ou anônima.

O órgão de fiscalização informou ainda que atua preventivamente e repressivamente para combater o trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, inclusive nas carvoarias roraimenses. Segundo o MPT, além de inquéritos civis em andamento, que podem resultar em um termo de ajuste de conduta ou em uma ação civil pública, há um procedimento promocional em curso, no bojo do qual estão sendo adotadas várias providências relativas à viabilização de local adequado para o funcionamento das carvoarias e apoio à Cooperativa dos Carvoeiros de Roraima, para a promoção de trabalho decente.

A silhueta dos jovens trabalhadores na fumaça dos fornos (Ricardo Oliveira/Cenarium)

O MPT reiterou ainda que associado ao trabalho em condições análogas ao de escravo, já foi identificado, na carvoaria do Distrito Industrial, o trabalho infantil, sendo uma das piores formas de trabalho infantil, conforme a Lista Tip (Decreto 6.481/2008), tendo o MPT atuado prontamente para combater essa violação de direitos.

Procurada pela reportagem, a Cooperativa dos Carvoeiros do Estado de Roraima (Unicarvão) reconheceu as infrações e disse que está trabalhando em parceria com o Ministério Público do Trabalho para se adequar às normas trabalhistas. A presidente da Unicarvão, Denize Vital da Silva, foi quem respondeu aos questionamentos da reportagem. Ela adiantou que a Carvoaria do Distrito Industrial será desativada e irá para outro terreno doado pelo governo do Estado.

Denize Vital informou ainda que apenas 64 pessoas que atuam na carvoaria do Distrito Industrial estão ligadas à cooperativa e que somente brasileiros são filiados. Em relação aos venezuelanos, estes não fazem parte da entidade. Segundo Denize, ainda não se sabe como a legislação brasileira classifica os estrangeiros na lei.

(Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Sobre a presença de menores, a presidente da cooperativa confirmou que foi assinado, no ano passado, com o MPT, um termo de ajuste de conduta para que os associados não levem os filhos para o local de trabalho. O que, segundo a lei brasileira, é classificado como exploração do trabalho infantil. 

Sem posicionamentos

Procurados para comentar sobre a documentação da carvoaria e se há autorização da mesma para funcionamento, o Governo de Roraima e a Prefeitura de Boa Vista não responderam aos questionamentos, até o fechamento desta reportagem, no dia 06 de maio.

Leia também: ‘Reféns do Carvão’: exploração de trabalhadores em carvoarias na Amazônia
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