Início » Sociedade » Relatório aponta geração sem alfabetização e fome em escolas da zona rural e urbana marajoara, no Pará
Relatório aponta geração sem alfabetização e fome em escolas da zona rural e urbana marajoara, no Pará
Transporte escolar fluvial em frente à escola de ensinos infantil e fundamental, em comunidade ribeirinha no município de Curralinho, no Pará (Cézar Colares/TCM-PA)
Compartilhe:
10 de julho de 2022
Com informações da FolhaPress
PARÁ – Ainda de madrugada, um barco inicia sua jornada em comunidades ribeirinhas do Arquipélago do Marajó, no Pará, para buscar alunos de escolas municipais. Nesse vai e vem, os estudantes vão embarcando e logo o transporte escolar fluvial fica superlotado, num trajeto que pode levar até três horas.
Quando chegam ao colégio, exaustos e famintos, os estudantes consomem enlatados na merenda. A infraestrutura, a maioria de madeira, não traz o aconchego necessário para manter a concentração nas aulas.
Essa foi a realidade encontrada por funcionários do TCM-PA (Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará) em visita a 136 unidades educacionais rurais e urbanas da região marajoara que abriga 17 cidades. A ação aconteceu entre o segundo semestre de 2021 e o primeiro deste ano. O arquipélago tem 1.255 escolas municipais no total.
PUBLICIDADE
De acordo com o relatório do tribunal, o cenário de extrema pobreza e a logística complexa resultaram na queda da qualidade de ensino nas salas de aulas dessa área. O índice de analfabetismo aumentou, em especial na pandemia, atingindo, em cheio, uma geração de alunos.
Há, ainda, estudantes de séries e idades distintas na mesma classe. Um exemplo recente: numa única sala de aula há alunos do 1° ao 4° anos juntos. Isso é mais comum em escolas mais isoladas, com poucos estudantes.
O documento mostra que alunos do 4° ano, por exemplo, não conseguem escrever frases inteiras ou até mesmo palavras completas quando submetidos a um ditado. Eles estão num vácuo educacional, já que a última vez em que estiveram na escola foi dois anos antes, quando estavam no 2° ano e a pandemia teve início, segundo Cezar Colares, conselheiro relator das contas dos municípios do Marajó e coordenador do projeto do TCM-PA.
Para ele, que visitou a maioria dessas 136 escolas, a pandemia potencializou um problema que já era crônico na região. Em alguns colégios o professor é o único funcionário. “Além de dar aula, ele faz merenda e limpa o local. Ou seja, ele não se dedica integralmente à educação porque precisa compensar a falta de outras funções essenciais”, diz Colares.
Outro problema é o consumo constante de merenda enlatada, como macarrão, arroz, feijão e mingau, por falta de energia elétrica. “Imagina o ânimo dos alunos que enfrentam uma maratona de barco, chegam na escola e não têm alimentação adequada. Para a maioria deles, aquela é a principal refeição do dia”.
Alimentos como carne e frango são disponibilizados nas sedes dos municípios, mas não chegam ali pela dificuldade do transporte, que pode levar 20 horas de barco, e por não haver um local refrigerado para manter o alimento.
Colares cita ainda que há escolas de madeira em situação precária, sem água e saneamento básico. “Conhecemos os banheiros amazônicos, onde as necessidades são levadas direto para os rios”.
Ele destaca ainda situações como ônibus escolares precários, obras de escolas e creches abandonadas há anos e a evasão escolar, em especial, de jovens grávidas. Algumas se afastam para cuidar do bebê e não voltam. Outras assistem aulas com os filhos no colo.
Diretor de um núcleo educacional na região rural de Bagre, o professor de matemática Edem Castor Pereira, 33, afirma que os educadores da região “não podem baixar a cabeça e nem perder as esperanças”.
Em uma região onde a internet não é uma realidade, Pereira explica que durante a pandemia os docentes levavam os deveres dos alunos até suas casas e buscavam 15 dias depois. “Eles corrigiam e davam nota”.
No retorno às aulas presenciais, este ano, os professores pensaram mecanismos para recuperar o tempo perdido na pandemia. “Aulas de reforço domiciliar, trabalhos extraclasse e busca ativa. Nossos professores são guerreiros, verdadeiros exemplos”, diz Pereira.
Colares cita outro problema na região: o salário dos professores. Segundo ele, muitos municípios pagam o piso salarial para concursados. Mas parte dos contratados, temporariamente, ele diz, tem remuneração inferior ao piso nacional.
Segundo Mara Lúcia Barbalho da Cruz, presidente do TCM-PA, o projeto-piloto tem a intenção de fazer diagnóstico nas escolas em situação crítica para propor soluções. O arquipélago foi escolhido porque parte de suas cidades está entre as piores do País no IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) e na avaliação no Ideb (índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
“Esses índices são alarmantes. Ultrapassamos os muros do tribunal para entender essa realidade. Estamos na segunda fase, pensar soluções”, diz Mara.
A gestão escolar, em geral, é um tema pouco trabalhado na organização escolar, sobretudo, a qualificação do gestor, afirma Eduardo Grin, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo.
Ele explica que, geralmente, a questão não é falta de dinheiro, e sim má administração dos recursos destinados à educação, como os 25% do orçamento do município e a verba do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica).
“As escolas fazem pouca gestão dos resultados educacionais. Um professor assume o cargo, mas não é gestor. Geralmente, ele assume a função sem ter feito uma especialização”.
Boa parte do orçamento vai para a folha de pagamento dos servidores. O que é usado de manutenção nas escolas, ele explica, às vezes, não é suficiente para dar conta, especialmente, em municípios mais pobres.
Para propor soluções realistas, foi criado o Gabinete de Articulação para Efetividade da Política de Educação no Arquipélago do Marajó, afirma o conselheiro Cezar Miola, presidente da Atricon (Associação dos Tribunais de Contas).
“É possível agir fiscalizando, mas também analisando os resultados para que essas situações sejam superadas”.
Procurado, o MEC (Ministério da Educação) não comentou o caso.
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.
Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.
Cookies Estritamente Necessários
O cookie estritamente necessário deve estar ativado o tempo todo para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará habilitar ou desabilitar os cookies novamente.