Relatório aponta geração sem alfabetização e fome em escolas da zona rural e urbana marajoara, no Pará

Transporte escolar fluvial em frente à escola de ensinos infantil e fundamental, em comunidade ribeirinha no município de Curralinho, no Pará (Cézar Colares/TCM-PA)
Com informações da FolhaPress

PARÁ – Ainda de madrugada, um barco inicia sua jornada em comunidades ribeirinhas do Arquipélago do Marajó, no Pará, para buscar alunos de escolas municipais. Nesse vai e vem, os estudantes vão embarcando e logo o transporte escolar fluvial fica superlotado, num trajeto que pode levar até três horas.

Quando chegam ao colégio, exaustos e famintos, os estudantes consomem enlatados na merenda. A infraestrutura, a maioria de madeira, não traz o aconchego necessário para manter a concentração nas aulas.

Essa foi a realidade encontrada por funcionários do TCM-PA (Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará) em visita a 136 unidades educacionais rurais e urbanas da região marajoara que abriga 17 cidades. A ação aconteceu entre o segundo semestre de 2021 e o primeiro deste ano. O arquipélago tem 1.255 escolas municipais no total.

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De acordo com o relatório do tribunal, o cenário de extrema pobreza e a logística complexa resultaram na queda da qualidade de ensino nas salas de aulas dessa área. O índice de analfabetismo aumentou, em especial na pandemia, atingindo, em cheio, uma geração de alunos.

Há, ainda, estudantes de séries e idades distintas na mesma classe. Um exemplo recente: numa única sala de aula há alunos do 1° ao 4° anos juntos. Isso é mais comum em escolas mais isoladas, com poucos estudantes.

Transporte escolar fluvial em frente à escola de ensinos infantil e fundamental, em comunidade ribeirinha no município de Curralinho, no Pará (Cézar Colares/TCM-PA)

O documento mostra que alunos do 4° ano, por exemplo, não conseguem escrever frases inteiras ou até mesmo palavras completas quando submetidos a um ditado. Eles estão num vácuo educacional, já que a última vez em que estiveram na escola foi dois anos antes, quando estavam no 2° ano e a pandemia teve início, segundo Cezar Colares, conselheiro relator das contas dos municípios do Marajó e coordenador do projeto do TCM-PA.

Para ele, que visitou a maioria dessas 136 escolas, a pandemia potencializou um problema que já era crônico na região. Em alguns colégios o professor é o único funcionário. “Além de dar aula, ele faz merenda e limpa o local. Ou seja, ele não se dedica integralmente à educação porque precisa compensar a falta de outras funções essenciais”, diz Colares.

Outro problema é o consumo constante de merenda enlatada, como macarrão, arroz, feijão e mingau, por falta de energia elétrica. “Imagina o ânimo dos alunos que enfrentam uma maratona de barco, chegam na escola e não têm alimentação adequada. Para a maioria deles, aquela é a principal refeição do dia”.

Alimentos como carne e frango são disponibilizados nas sedes dos municípios, mas não chegam ali pela dificuldade do transporte, que pode levar 20 horas de barco, e por não haver um local refrigerado para manter o alimento.

Colares cita ainda que há escolas de madeira em situação precária, sem água e saneamento básico. “Conhecemos os banheiros amazônicos, onde as necessidades são levadas direto para os rios”.

Ele destaca ainda situações como ônibus escolares precários, obras de escolas e creches abandonadas há anos e a evasão escolar, em especial, de jovens grávidas. Algumas se afastam para cuidar do bebê e não voltam. Outras assistem aulas com os filhos no colo.

Diretor de um núcleo educacional na região rural de Bagre, o professor de matemática Edem Castor Pereira, 33, afirma que os educadores da região “não podem baixar a cabeça e nem perder as esperanças”.

Em uma região onde a internet não é uma realidade, Pereira explica que durante a pandemia os docentes levavam os deveres dos alunos até suas casas e buscavam 15 dias depois. “Eles corrigiam e davam nota”.

No retorno às aulas presenciais, este ano, os professores pensaram mecanismos para recuperar o tempo perdido na pandemia. “Aulas de reforço domiciliar, trabalhos extraclasse e busca ativa. Nossos professores são guerreiros, verdadeiros exemplos”, diz Pereira.

Colares cita outro problema na região: o salário dos professores. Segundo ele, muitos municípios pagam o piso salarial para concursados. Mas parte dos contratados, temporariamente, ele diz, tem remuneração inferior ao piso nacional.

Segundo Mara Lúcia Barbalho da Cruz, presidente do TCM-PA, o projeto-piloto tem a intenção de fazer diagnóstico nas escolas em situação crítica para propor soluções. O arquipélago foi escolhido porque parte de suas cidades está entre as piores do País no IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) e na avaliação no Ideb (índice de Desenvolvimento da Educação Básica).

“Esses índices são alarmantes. Ultrapassamos os muros do tribunal para entender essa realidade. Estamos na segunda fase, pensar soluções”, diz Mara.

A gestão escolar, em geral, é um tema pouco trabalhado na organização escolar, sobretudo, a qualificação do gestor, afirma Eduardo Grin, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo.

Ele explica que, geralmente, a questão não é falta de dinheiro, e sim má administração dos recursos destinados à educação, como os 25% do orçamento do município e a verba do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica).

“As escolas fazem pouca gestão dos resultados educacionais. Um professor assume o cargo, mas não é gestor. Geralmente, ele assume a função sem ter feito uma especialização”.

Boa parte do orçamento vai para a folha de pagamento dos servidores. O que é usado de manutenção nas escolas, ele explica, às vezes, não é suficiente para dar conta, especialmente, em municípios mais pobres.

Para propor soluções realistas, foi criado o Gabinete de Articulação para Efetividade da Política de Educação no Arquipélago do Marajó, afirma o conselheiro Cezar Miola, presidente da Atricon (Associação dos Tribunais de Contas).

“É possível agir fiscalizando, mas também analisando os resultados para que essas situações sejam superadas”.

Procurado, o MEC (Ministério da Educação) não comentou o caso.

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